“Não tinha outra hipótese, porque as lojas que fornecemos também estão fechadas e os cheques deixaram de cair. Mas acho isto do cerco ridículo. A câmara foi precipitada e o que se devia ter feito é impor medidas mais controladas nas empresas,”, defende.
Um dos aspetos que o empresário mais censura é o “absurdo de os sócios-gerentes não terem direito a ‘lay-off”, o que Natália Moreira também critica. Argumenta que “quem agora está a aplaudir o cerco sanitário, daqui a dois ou três meses vai acordar para a vida, ao ver as empresas de Ovar mandarem 10.000 trabalhadores para casa e instalar-se o caos geral, com salários cortados, desemprego e miséria”.
Rui conseguirá manter a empresa durante algum tempo porque sempre se acautelou com “uma certa almofada financeira” para fazer face a imprevistos, mas sabe que o mesmo não se aplica a quem tem “60 ou 70 empregados e paga rendas de 1.500 ou 2.000 euros por mês”. Suspender a cobrança de alugueres e outras medidas de adiamento também não são solução: “Não são justas para os proprietários que precisem das rendas para viver e só adiam o problema”.
Quem consegue encarar a situação com algum humor e o otimismo, mais para ajudar a levar os dias do que para iludir a realidade, é Vera Cardoso, que vive apenas com o marido e dois filhos, mas abre as portas também à irmã e ao cunhado, por todos residirem lado a lado, em duas casas geminadas que se servem de um terraço enorme para as crianças brincarem e os adultos apanharem ar fresco.
Enquanto Rui Valente diz que estar fechado em casa “é das piores sensações que se pode ter na vida”, por sentir falta das viagens constantes a Lisboa e das deslocações de negócios aos Açores e à Madeira, Vera conta que na primeira semana de isolamento quase não deu pelo tempo passar e só depois começou a preocupar-se mais, à medida que ia recebendo notícias da economia local.
“A nossa quarentena nem tem sido muito má, porque aproveitei para fazer uma revisão geral à casa e tenho sempre os miúdos para me entreter, ela com os trabalhos de casa de manhã, ele com jogos de tabuleiro, e, pelo meio, ainda os trabalhos manuais que a catequista tem enviado pela internet e umas bolachinhas caseiras que desaparecem num instante”, conta a residente de Arada, rindo-se dos ataques à dieta em período de quarentena.
Vera sente-se apreensiva, ainda assim, quanto aos efeitos da paragem económica a que o concelho está sujeito, sobretudo porque a produção da empresa onde trabalha, a Mazeltil, está dependente dos pedidos da Yazaki Saltano e essa unidade já se ressente da quebra de encomendas registada a nível mundial em todo o setor automóvel.
“Isso é o que me aflige mais, mas estou a tentar ver a coisa pelo lado positivo, até porque percebo esta questão do isolamento: a minha mãe é diabética, a minha sogra tem uma doença degenerativa e está muito débil, e, se alguém ficar infetado aqui em casa, pode ser muito mau”, explica.
Mudanças de hábitos vão-se assim aplicando a todos, numa postura partilhada em que o objetivo é “levar um dia de cada vez” e tentar superá-lo de forma mentalmente sã.
O Rui, por exemplo, perde alguma paciência com a esposa por a ver num regime de teletrabalho intenso relacionado com a proteção civil, mas procura compensá-la na cozinha ao assumir a confeção das refeições.
A Natália passou a fazer aulas de Pilates através da internet e reforçou as hostes locais de adeptos da lida doméstica, o que a leva a acreditar que, embora sem visitas, “as casas de Ovar por estes dias estão todas a brilhar”.
Vera começou hoje a aventurar-se na criação de uma horta doméstica, mas já faz planos para um bolo de chocolate económico e sem ovos que não deverá durar mais do que dois dias em casa. “Por este andar, vamos todos chegar ao fim do cerco a rebolar”, diz entre gargalhadas, “mas de certeza que há coisa piores do que isso”.
A 17 de março, o Governo declarou o estado de calamidade pública no concelho de Ovar, que a partir do dia seguinte ficou sujeito a cerco sanitário com controlo de fronteiras e suspensão de toda a atividade empresarial não afeta a bens de primeira necessidade. A medida foi prolongada e ficará em vigor até 17 de abril.
O novo coronavírus responsável pela pandemia da covid-19 foi detetado na China em dezembro de 2019 e já infetou mais de um milhão de pessoas em todo o mundo, das quais mais de 51.000 morreram.