CISA – “Colégio promoveu de forma singular a afirmação social da mulher açoriana”

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Maria Conceição Moniz Amaral de Castro Ramos, natural das Flores, ingressou no Colégio de Santo António aos 13 anos para frequentar o Curso Geral dos Liceus, do 1.º ao 5.º ano.
Licenciada em Filologia Germânica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e Doutorada em Ciências da Educação – Educação e Desenvolvimento pela Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Lisboa, Conceição Ramos, neste momento aposentada e residente em Lisboa. Foi Professora do Ensino Secundário e do Ensino Superior Universitário. Foi também Presidente do Conselho Científico para a Avaliação de Professores, Inspetora-Geral da Educação e Presidente do Conselho Superior das Escolas Europeias, entre muitos outros cargos de relevo.
Para esta antiga aluna do Colégio de Santo António, a instituição foi uma escola que lhe permitiu aprender a enfrentar as dificuldades, a ter consciência de si e que “promoveu de forma singular a afirmação social da mulher açoriana”, revelou ao Tribuna das Ilhas no âmbito das entrevistas que este semanário tem vindo a publicar mensalmente, para assinalar a passagem dos 160 anos da CISA.

TI - Quantos anos frequentou o Colégio de Santo António?
Cinco – do 1.º ao 5.º Ano do Curso Geral dos Liceus.

TI - Qual o motivo do seu ingresso?

Decisão dos meus Pais, porque entendiam ser a melhor alternativa, nas circunstâncias da época.

TI - Quais as memórias pessoais e pedagógicas que reserva do Colégio?
Pertenço a uma geração de Açorianas das “Ilhas de baixo” que deixavam o conforto da família, o convívio das amigas, os sítios preferidos de brincadeiras e passeios, para estudar no Faial, porque nesse tempo só era possível frequentar o ensino liceal nas capitais de distrito.
Partia-se de casa com onze/doze anos, primeiro para fazer o exame de admissão ao Liceu. Abro aqui um parêntesis para dizer que as provas de exame demoravam poucos dias, mas nós – das Flores e do Corvo – tínhamos de ficar um mês inteiro na cidade da Horta à espera de vapor. Este exame não conferia qualquer grau. Fazia parte de um processo seletivo, uma espécie de licença para frequentar o ensino liceal, a que poucos tinham acesso.
Foi em Setembro de 1957. Recordo perfeitamente a viagem de regresso ao Faial para frequentar pela primeira vez o Colégio de Santo António.
Ao aproximarmo-nos de terra, um cheiro muito intenso a enxofre invadia o Carvalho Araújo. Os passageiros debruçados no convés, interrogavam o mar e o céu para perceber o que se passava. Os golfinhos com as suas acrobacias naquele oceano de um cinzento inconfundível estavam ausentes. O mar estava calmo e imperturbável com manchas amarelas coalhadas de peixes mortos à superfície. Ninguém entendeu o fenómeno e não me recordo do que então se disse sobre o assunto.
Só mais tarde compreendi que se tratava dos primeiros sinais da crise sísmica de 1958. Vivi intensamente e de forma inesquecível toda a evolução do vulcão dos Capelinhos. Tenho muito presente, aquele roncar potente, tremendo e assustador vindo das profundezas da terra ou do mar, as erupções de um azul incandescente que invadiam em certas noites os dormitórios, o dia em que uma “chuva seca de cinzas” nos surpreendeu, o fascínio de torrentes de lava em movimento lento, o aparecimento do ilhéu do Espirito Santo e a noite trágica de 12 para 13 de Maio de 1958, em que a Ladeira de Santo António parecia ter acordado em revolta… as pedras rolavam estrondosamente soltando-se dos muros. O pátio de recreio, onde constrangidas nos refugiámos tremia. Nós ali paradas, estarrecidas. Depois a incerteza, o medo… sentimentos fortes que se misturavam e nos confundiam.
Os Pais e familiares das nossas colegas do Faial e da ilha em frente iam chegando ao Colégio e elas partindo com eles… Nós, das Flores e do Corvo, com o pavor de ficar sós. Órfãs naqueles momentos consternadores, com a dor dentro de nós, interrogávamo-nos com o olhar sobre o que era aquilo, o que iria acontecer no Faial. Vi, pela primeira e única vez, lágrimas nos olhos das Irmãs impotentes naquela situação.
No dia seguinte, o Senhor Governa-dor Civil e o Presidente da Mesa Administrativa do Asilo de Infância Desvalida e do Colégio de Santo António providenciaram um plano de contingência. O Colégio e o Asilo fecharam. Acompanhadas pelas Irmãs embarcámos na traineira “Urzelina” para S. Jorge. Uma travessia amarga e atribulada, marcada pela apreensão e pelo temor de que a traineira desaparecesse na cava das ondas, por um profundo sentimento de ausência da família, pela vontade de fugir sem saber como, de voltar para casa…
Em S. Jorge, fomos acolhidas com carinho pelas pessoas da Urzelina, instaladas num casarão enorme e estranho. Não faltava nada e faltava tudo. Recordo esses dias longos de ansiedade e dor sem notícias de casa e a chorar às escondidas…
Conheci bem cedo os custos do isolamento e da insularidade. Este episódio marcou o meu primeiro ano de Colégio e o meu percurso de vida. Apreendi o sentido entre aqueles que tinham e os que não tinham condições para estudar, entre o estar perto e o estar longe da família. Adquiri uma forma diferente de olhar o mundo, a fragilidade e a importância da vida, o valor das relações profundas, a combinação entre o medo e a beleza das forças da natureza, a alegria no desfazer da solidão…
Nos anos seguintes, observava-se o ritual de viagem entre o Faial e as Flores, ignorando outras rotas e outros mundos impercetíveis. Após as férias grandes, viajávamos uma noite inteira no convés do Carvalho Araújo. Descanso não havia, porque entre enjoos, canções, historietas e risadas, tudo convergia numa festa que só tinha fim com a própria viagem. O regresso tardaria longos meses, até junho/julho. Todo este tempo sem voltar a casa. Não havia férias de Natal, nem da Páscoa, nem aniversários, nem Carnaval…
Os navios só faziam escala de mês a mês. No inverno nem isso. E porque só podíamos dar e receber notícias nestas condições, o tempo ia agravando e ou sarando queixumes e saudades. Não havia televisão, nem internet, nem telemóvel, nem multibanco, não se ouvia telefonia… As mensalidades eram pagas por vales do correio ou entregues pessoalmente. A tudo isto acrescia a responsabilidade enorme de corresponder no estudo às expectativas e aspirações da nossa família. Tinha consciência de quantos sacrifícios os meus pais faziam.

TI - Como descreve os principais constrangimentos sentidos pela sua geração?
Os constrangimentos tinham a ver com os transportes e comunicações, com as dificuldades económicas, com a separação familiar, com a adaptação a uma vida nova, noutra ilha, com outros professores laicos e Irmãs Francis-canas, com colegas de todas as ilhas nas mesmas circunstâncias.
Perdida num mar de desafios, tinha de viver uma vida nova confinada a três edifícios e um pátio de recreio. Entre muros com um enorme portão (assim me parecia na altura) que todos os dias se abria para professores e alunas externas ao som dum sino que dizem remontar ao velho Convento Franciscano. Para nós permanecia fechado, a não ser em dias especiais de passeios ou de exames no Liceu.
O Colégio era uma ilha na cidade, uma comunidade académica entre muros e janelas altas, tão altas que apenas se via o céu. Mas tinha uma outra janela natural, sempre aberta, sem limites – o Muro da Velha – onde nos debruçávamos rasgando horizontes reais e imaginários a olhar para o Canal… e lá longe, na outra margem, descortinávamos no Pico as casas da Silveira dispostas em S, a doca e o vaivém das lanchas e barcos (Espala-maca, Terra Alta, Santo Amaro, Car-valho Araújo, Funchal …); os Ilhéus de sentinela à Madalena, S. Jorge sempre estirado a leste num recorte azulado ou acinzentado, por vezes encoberto.
Era neste muro que tínhamos saudades, confidências e sonhos… e entoávamos em jeito de serenata, sobretudo em noites de S. João olhando o Pico, o encanto da noite, do luar e do mar.
Por paradoxal que pareça este foi um tempo feliz, porque os constrangimentos e as dificuldades foram instrumentais na minha formação, e se não podia sair daquele castelo – facto incontornável para quem tinha conhecido outra liberdade – crescia para dentro…
As Irmãs Franciscanas organizavam com sabedoria um plano de vida (inflexível) com horas para tudo: estudo, recreio, ensaios para espetáculos e récitas, missa, palestras e reuniões da JEC… Não havia tempo livre, nem espaço para entrar a tristeza. Não havia imposições no modo de ser. Cada uma aprendia naturalmente a viver melhor.
Estas rotinas e o seu cumprimento formavam-nos para o valor do tempo e para a necessidade de saber aproveitá-lo. Ao mesmo tempo, naquele ambiente “programado” aprendíamos a ser disciplinadas, metódicas e mais do que isso, a ganhar autoestima e autonomia. Este modo de vida ia diluindo a consciência inicial de uma mudança dolorosa e de uma situação de isolamento, porque se tinha um objetivo claro – concluir com sucesso o 5.º Ano do Liceu que na altura tinha imenso prestígio e valor social. Era uma “apólice de seguro” para ter um futuro profissional. Sabíamos que o nosso esforço seria compensado.
Num olhar retrospetivo à luz de outras vivências pessoais, o Colégio foi uma escola que me permitiu aprender a enfrentar as dificuldades, a ter consciência de mim; a viver com pouco, sem preocupações com aspetos prosaicos da vida (vestuário, compras supérfluas…). Uma das minhas preocupações era manter a bata branca durante uma semana sem prescindir dos jogos no recreio. Esta parcimónia manifestava-se também na compra e uso do material escolar. As extravagâncias limitavam-se a umas estampas que oferecíamos pelos aniversários. Cultivava-se a sobriedade e a modéstia sem complexos, nem aspirações.

TI - Que papel teve o Colégio nesses anos?
Extinto antes do advento da democracia e contrariamente ao que seria de esperar de uma existência temporalmente limitada (1933-1972), o Colégio de Santo António desempenhou um papel preponderante na formação pessoal e na preparação de várias gerações de alunas para o desempenho de funções sociais, culturais, económicas e políticas. Promoveu de forma singular a afirmação social da mulher açoriana.
Abriu caminho para a frequência de outros cursos e para o acesso a lugares na função pública ou empresarial. Este contributo inestimável para a mobilidade social feminina está patente nas colegiais que se distinguiram em vários sectores na vida pública e religiosa.
No plano político e social contribuiu para a equidade no acesso ao ensino liceal, num tempo em que que o Estado não dava resposta conveniente às populações das ilhas mais desfavorecidas, investindo sobretudo nas capitais de distrito e deixando as restantes praticamente sem alternativa.
É importante sublinhar que o Colégio de Santo António não funcionou em concorrência com o ensino oficial. Substituiu o Estado e foi instrumento determinante para nivelar oportunidades de aprendizagem, ao oferecer um projeto educativo de qualidade em condições de acesso e frequência em tudo igual ao do Liceu.
E desempenhou um papel relevante de solidariedade social, na medida que as receitas por ele geradas contribuíam para sustentar financeiramente o Asilo de Infância Desvalida.
Frequentado por alunas de todas as ilhas com pertenças sociais e culturais diferentes rompeu à sua maneira o ciclo de isolamento insular e por isso pode afirmar-se que foi agente e construtor da identidade açoriana e lugar de socialização.
Aí alargávamos o nosso mundo conhecido. O arquipélago dos Açores era mais do que as Flores e o Corvo – um outro arquipélago pelo isolamento e distância. Era o Faial e o Pico e todas as ilhas e não era apenas a geografia. Era também a noção que se adquiria da diversidade da cultura açoriana nos seus falares, usos e costumes que a vivência em comunidade nos proporcionava.

TI - Quais os valores/princípios adquiridos no seu percurso CISA e que preserva ainda hoje?
Não me vou referir ao acrónimo CISA (Casa de Infância de Santo António), mas ao Colégio de Santo António.
Trata-se de duas instituições distintas: O CISA é presentemente o herdeiro do Asilo de Infância Desvalida – hoje uma instituição de solidariedade social que continua a desenvolver os seus valores fundadores. O Colégio de Santo António foi um estabelecimento de ensino particular que funcionou no mesmo espaço, embora em edifícios separados e com a mesma tutela administrativa e pedagógica – a Confraria de Santo António de Pádua e a Congregação das Irmãs Franciscanas Hospitaleiras Portuguesas respetivamente, mas com finalidades e racionalidades distintas.
Quando o Colégio foi criado por iniciativa da Madre Adília de Maria Santíssima e do empresário aialense José Francisco Machado, o Asilo já tinha 75 anos de existência e continuou como CISA depois da reforma institucional do Asilo. O Colégio foi extinto em 1972 por se terem esgotado as razões e condições do seu funcionamento.
Desenvolvo este assunto numa comunicação que será publicada nas Atas do Colóquio “O Faial e a Periferia Açoriana” que teve lugar no mês de Junho do corrente ano.
A formação pessoal e social dada pelas Irmãs Franciscanas era sustentada por um projeto educativo de ideário religioso. Assentava numa linha marcadamente orientada para a educação da vontade e assimilação de regras de conduta, hábitos de ordem, trabalho aturado, espiríto de justiça e de solidariedade e nesse contexto reconheço que estes princípios e valores foram especialmente importantes, para lidar com os problemas do quotidiano, profissionais e sociais e fundamentar atitudes e tomadas de decisão.

TI - Para si, falar da CISA, é sinónimo de …
Falar do Colégio de Santo António é sinónimo de privilégio e de gratidão a todos os que direta ou indiretamente deram vida a esta instituição ao serviço da nobre causa da Educação. 

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