Raul Bettencourt, investigador do DOP: “Agora é o momento de apostar na biotecnologia marinha nos Açores”

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Hoje, 16 de Novembro, assinala-se o Dia Mundial do Mar. Para celebrar a efeméride, Tribuna das Ilhas foi saber mais sobre a investigação científica na Região com impacto na área da biotecnologia marinha, assumida cada vez mais como um dos possíveis pilares de uma futura Economia do Mar. Estivemos à conversa com Raul Bettencourt, investigador do Departamento de Oceanografia e Pescas (DOP) da Universidade dos Açores, que nos falou sobre as suas descobertas nesta área. O cientista não tem dúvidas de que o potencial existe e de que pode ser economicamente rentável para os Açores.


Sob o mar cristalino dos Açores há um mundo de biodiversidade, onde se passeiam várias espécies de cetáceos, peixes de todas as cores e feitios e um sem número de outros seres. Todos contribuem, de alguma forma, para a economia das ilhas. Alguns sacrificam-se para que os Açores possam ser conhecidos pelo peixe mais saboroso do país. Outros fazem as delícias dos turistas que se contentam em observá-los, dos barcos ou debaixo de água. À medida que mergulhamos mais e mais nestas águas, a luz do sol desaparece e o ambiente transforma-se de tal forma que é quase como se tivéssemos mudado de planeta. A mais de 800 metros de profundidade, junto das fontes hidrotermais, a escuridão é total, a água tem um grau de acidez elevado e está carregada de metais e gases tóxicos, a temperatura é humanamente insuportável e a pressão provocada pelos milhares de toneladas de água é brutal. É, verdadeiramente, um ambiente adverso à vida como nós a conhecemos. Mas existem organismos que vivem nesses locais.

Em 2004, Raul Bettencourt, cientista do DOP, decidiu tentar perceber como é que esses animais se adaptavam ao ambiente inóspito em que viviam. Depois de um doutoramento na Suécia e de um pós-douramento nos Estados Unidos, na área da genética molecular, Raul queria regressar a casa e aplicar nos Açores o que tinha aprendido. Por isso, decidiu focar a sua atenção numa espécie de mexilhão que vive nas fontes hidrotermais de ambiente marinho profundo, o Bathymodiolus azoricus. Conhecemos o Bathy, chamemos-lhe assim, submerso numa substância conservante dentro de um copo no laboratório do DOP. À primeira vista, pareceu-nos um mexilhão vulgar, semelhante aos que fazem as delícias de alguns apreciadores de marisco. Mas o Bathy está para os mexilhões ditos “normais” como o super-homem está para os humanos.

“Super Mexilhão”

Como explica Raul, este mexilhão, bem como os camarões, bactérias e outros organismos que habitam estas fontes hidrotermais, sobrevivem com base num pressuposto totalmente diferente do que regula a vida à superfície da Terra: “a vida tal como a conhecemos junto da superfície não poderia existir nestes ambientes. Ela existe porque estes ecossistemas utilizam energia química e não energia solar. À superfície, as plantas fazem a fotossíntese para se desenvolverem e depois são a base da cadeia alimentar. Nestas fontes hidrotermais, quem produz os nutrientes que irão servir de base à cadeia alimentar são bactérias, microorganismos que utilizam compostos químicos que resultam na produção de energia utilizada no fabrico de alimento. Estas bactérias servem de alimento a alguns animais, que por sua vez são o alimento de outros animais, e assim sucessivamente”, explica.

Para Raul, descobrir os mecanismos que este mexilhão utiliza para se defender do meio agreste em que vive poderia ter um interesse do ponto de vista da biotecnologia, ou seja, poderia permitir recolher informação biológica para ser usada para benefício do Homem.

Em 2009 a sua equipa conseguiu caracterizar parte do genoma do mexilhão, ou seja, conseguiu “descodificar” informação genética das células do animal. “O código genético é uma espécie de livro de instruções de como as células deverão comportar-se mediante um estímulo do exterior. Essa parte do genoma é o transcriptoma. Nós conseguimos determinar a identidade desses genes e organizámo-la numa base de dados ainda hoje única a nível mundial”, explica.

Agora, os cientistas mantêm alguns destes mexilhões vivos num aquário, onde tentam recriar o ambiente das fontes hidrotermais. Aqui, fazem uma série de experiências, “para ver qual a resposta do animal à activação de determinados genes”. “Estamos a tentar entender como é que o animal se adapta ao meio em que vive e se algumas das substâncias que produz podem ou não ser utilizadas pelo Homem”, refere o investigador.

“Este animal tem de se defender de microorganismos, fungos, vírus e parasitas, entre outras coisas, da mesma forma que nós nos defendemos. Todos os animais têm antibióticos naturais para se defenderem dessas ameaças. Nós também os temos, nos sacos lacrimais, na saliva, nas mucosas… O mexilhão tem esses antibióticos naturais, no seu sangue e nas suas brânquias, e, tendo em conta a adversidade do meio em que vive, as substâncias antibacterianas que ele produz são também muito especiais e por isso ele é um candidato interessante para a descoberta de novos antibióticos”, refere Raul.

A criação de um antibiótico com base nas substâncias produzidas por este mexilhão seria muito importante para a indústria farmacêutica pois, como lembra Raul, “as bactérias têm tendência para resistir aos antibióticos químicos”. “A descoberta de novos antibióticos, de origem natural e com formas de actuação especiais, poderá criar uma nova geração de antibióticos para matar microrganismos resistentes”, diz.

Para além das substâncias antibacterianas, este mexilhão também tem substâncias antifúngicas e mecanismos de desintoxicação muito poderosos para eliminar os metais pesados do ambiente em que vive. “Já todos ouvimos falar nos envenenamentos por metais. Este mexilhão poderá ajudar a produzir medicamentos que facilitem o tratamento desses envenenamentos. Há outro aspecto com este relacionado, que nós ainda não abordámos mas que podemos imaginar, que tem a ver com a radiação. Acreditamos que ele possa ter mecanismos de resistência à radiação nuclear”, refere, acrescentando que o mexilhão tem ainda propriedades facilitadoras da cicatrização.

“O genoma deste animal está sempre a ser agredido, por isso ele desenvolveu mecanismos moleculares que lhe permitem reparar o próprio ADN. Imagine que pegamos nessa molécula e a utilizamos para benefício humano: quando tivermos um dano, provocado por uma radiação, um metal, ou outra coisa qualquer, essa substância iria fazer sobre nós o mesmo que faz ao mexilhão, de uma forma natural”, explica Raul para demonstrar as potencialidades deste super-organismo.

No entanto, não é apenas na área da medicina que o mexilhão das fontes hidrotermais marinhas de ambiente profundo revela potencialidades: “também estamos interessados no potencial deste animal para a produção de energia. Ele tem bactérias que vivem no seu interior num regime de simbiose (elas fornecem-lhes nutrientes e ele, em contrapartida, fornece-lhes um ambiente protector). Essas bactérias têm enzimas que podem servir para inspiração de novos métodos de obtenção de energia, como a produção de bioetanol. Hoje esta ainda é um processo bastante caro porque são necessários muitos passos para chegar ao produto final. Mas estas enzimas tornam este processo mais rápido”, refere o investigador.

Outra área em que as potencialidades biotecnológicas do mexilhão podem ser usadas é na regeneração celular da pele. Isto pode tornar a investigação apetecível à cosmética, uma indústria rentável e que tem a mais-valia de permitir que um produto seja lançado mais rapidamente no mercado do que na indústria farmacêutica. 

 
Leia a reportagem completa na edição impressa do Tribuna das Ilhas de 16.11.2012 ou subscreva a assinatura digital do seu semanário


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