Reflexões Crónicas | A «inexplicável» recusa de classificação do Pilar

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DR/TI
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Ficámos a saber há pouco que, pela segunda vez, o processo de classificação da Casa do Pilar foi “inexplicavelmente recusado por parte da tutela” (Isabel Albergaria).

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Há muito escrito sobre o Pilar, mas deixo uma breve nota. Esta opulenta casa de campo foi construída por volta de 1785 por Manuel Inácio de Sousa, o mais importante comerciante faialense e um dos açorianos mais cultos da sua época – estudou, viajou, escreveu, traduziu e organizou serões culturais, meio século antes dos jornais, das sociedades literárias, do liceu e do teatro. A casa que construiu para viver da última década e meia de vida não é apenas testemunho fundamental de um dos períodos áureos do Faial, é também um exemplar arquitectónico único nos Açores. A sua singularidade, aliada ao notável jardim com embrechados de conchas e porcelanas chinesas, e ao planeado enquadramento paisagístico sobre a cidade e o Pico, ditam que, mesmo em ruínas, este conjunto tem um valor histórico incontestável e que extravasada em muito o seu mero interesse local.
O seu valor é reconhecido desde o século XIX, provocando o espanto de visitantes estrangeiros – como J. P. Morgan, que descreve a ruína como “vestígios daquilo que um dia foi e da loucura que é gastar dinheiro numa coisa deste género” (Torre, p. 133) – e há décadas que está referenciado e vem sendo estudado. Em 2015 integrou uma lista de 18 imóveis faialenses propostos para classificação pela DRAC, que resultou já de um longo trabalho técnico, assumindo-se que todos estavam em condições de ser classificados e sendo este provavelmente o mais importante. No final apenas seis (um terço) foram classificados e, já inexplicavelmente, o Pilar não foi um deles.
Foi feita uma segunda proposta de classificação, integrando agora o detalhado estudo de João Vieira Caldas, que não deixa margem de justificação para a recusa (se o Pilar não reúne condições para ser património protegido muito pouco do restante reunirá). “Inexplicavelmente” o segundo processo voltou a ser recusado no nível de decisão política, agora por um governo diferente. No mesmo dia foi anunciada a sua colocação no mercado imobiliário, o que significa que a qualquer momento pode ser vendido e destruído, o que seria uma perda irreparável para o Faial.
Vamos ainda a tempo de a evitar e faço por isso um apelo aos faialenses, e em particular à Câmara Municipal, para que tomem nas suas mãos esta questão e que, em conjunto, possamos garantir que à terceira é de vez. Se nada se fizer, o Pilar entrará no extenso rol de património perdido que choraremos no futuro (veja-se, neste mesmo número, o texto “A Horta Desaparecida”, cuja coincidência de publicação hoje não podia ser mais útil). Lembro que em tempos a nossa Câmara planeou a demolição do Forte de Santa Cruz, integrada na modernização da frente da cidade, o que teve grande apoio na época. Felizmente alguns teimosos mexeram-se e, sem qualquer dos conhecimentos e mecanismos legais de hoje, conseguiram não só salvá-lo como classificá-lo como Monumento Nacional (até hoje o único da região). Portanto, nós também conseguimos, basta vontade.

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Imagens: pormenor da porta principal do Pilar em 2019, cujo desenho só tem paralelo em alguns palácios e casas nobres lisboetas
Veja-se: João Vieira Caldas, “Um olhar arquitectónico sobre a Casa do Pilar, na periferia da Horta”, O Faial e a Periferia Açoriana, 2019, pp. 245-270; Luís M. Arruda, “Manuel Inácio de Sousa”, Enciclopédia Açoriana (http://www.culturacores.azores.gov.pt/ea/pesquisa/Default.aspx?id=10251); Isabel Albergaria, “Casa do Pilar – um magnífico exemplar arquitectónico condenado ao desaparecimento?!”, Açoriano Oriental, 21.9.2022, p. 18; Elisa Gomes da Torre, My Sweet Fayal. Diário de Viagem de J. Pierpont Morgan nos Açores, 2021.
Em defesa da Língua Portuguesa, o autor deste texto não adopta o “Acordo Ortográfico” de 1990, devido a este ser inconsistente, incoerente e inconstitucional (para além de comprovadamente promover a iliteracia em publicações oficiais e privadas, na imprensa e na população em geral).