A minha vida com as freiras

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Completada a escolaridade obrigatória (4ª. classe na época) lá na ilha do Pico, os meus pais decidiram que eu continuaria na Horta os meus estudos. Tudo teria corrido a primor, caso o pai não tivesse lançado o veredicto final: “só no colégio de Santo António. Filha minha não vai para o liceu, era o que faltava!”

E lá fui levada pela mão dele, alta madrugada, na camioneta da carreira, Madalena, lancha, Faial, Colégio, freiras. E aí começou o princípio do fim da minha vida mágica de até então.

Eu, criada à solta, quase numa quinta, rodeada de animais, árvores, pessoas que me amavam e cuidavam de mim com carinho, de repente fiquei ali no meio delas, as freiras. Eu, habituada a caminhar por entre árvores, como que celebrando a existência de todo um ritual, sentando-me nos ramos, vencendo obstáculos, protegendo o coração, ouvindo o alarido de outras crianças. Eu, que após as missas do domingo, no aconchego do lar, saboreava os pitéus da velha empregada, senhora Maria Amélia, sentindo perder medos e culpas como um afresco que de repente conhecesse a luz do sol. Eu, agora estava qual animal enjaulado.

Vi o pai partir. Abraçou-me e desapareceu. A freira de imediato fechou a porta e ali fiquei num tète-à-tète, com ela que logo começou a dar instruções. Instruções essas que no momento nem captei. E de repente achei-me sozinha vendo-a desaparecer qual pinguim pelos longos corredores. E foi então que comecei a tomar consciência da coisa. Invadiu-me um desejo tremendo. Das profundidades do meu ser nasceu um grito que abortou, grito esse que teria arrepiado de terror o próprio Hitchcook. Só não fugi porque não era possível.

E foi assim que Maria Antonieta se viu integrada na família do colégio de Santo António. Eu, que crescera e vivera em liberdade, sentia-me acorrentada, presa. Não sei porquê mas não recordo nada que durante aqueles anos me tenha marcado, me tenha feito feliz. Nada que eu possa contar, como tantos outros episódios antes de… e depois de… colégio. Não recordo de ter abordado esse espaço de tempo com carinho, com uma lembrança feliz capaz de iluminar a minha vida.

É certo que aprendi muito com as freiras. Aprendi a saber conter minhas vontades e quereres, a saber ouvir e calar, a obedecer, a respeitar todo o mundo, a ir e vir a tempo e horas. Aprendi que toda a comida é boa e que nada deve ser rejeitado mesmo quando sabemos que antes de nós outro ser nadou na sopa. E caso alguém refilasse, lá estava a irmã Electa de plantão, obrigando a comer, vomitar e comer mais. E no fim havia que rezar e agradecer.

Aprendi a tomar banho poucas vezes como trocar de roupa era também um mistério. Ela, a roupa, era racionada. Havia a asilada que guardava a chave do nosso roupeiro e, caso conseguíssemos que ela nos entregasse uma peça fora do horário não estabelecido era o fim da macacada. E as freiras acusavam-nos de “amizade particular” com a asilada em questão. E a probrezinha tinha castigo.

Aprendi que ali havia três classes sociais: as freiras, as pensionistas e as asiladas. E como tal eram atendidas.

Aprendi que teria de levar a vida fazendo sacrifícios sem conta. Começando por levantar às seis horas da manhã, assistir à missa, confessar e comungar sempre, caso contrário éramos vistas como pecadoras inconsequentes. E tudo era pecado. Aprendi a vestir e despir usando sempre o roupão enfiado. Até já esqueci como fazer a magia. Aprendi a beijar a mão às freiras. Umas atrás das outras. Era muito higiénico. Aprendi que as cartas que escrevíamos à família eram entregues à madre superiora (comissão de censura) e só depois seguiam destino. O mesmo acontecia na hora de recepção das cartas recebidas. 

E fui aprendendo. Aprendi a fingir que estava tudo bem para nosso bem. Caso contrário havia os castigos. Não recreio. Não lanche. Não conversa. Não roupa lavada. Aprendi que homem era um bicho com quem não se podia falar. O jardineiro, que o havia, acho que o vi duas ou três vezes à distância. O senhor padre Escobar, na altura capelão do colégio, dizia a missa e sumia. Eu achava-o já um velho e à conta disso bastas vezes tive vontade de desabafar com ele. Mas não houve hipótese. Imaginem, velho ele? Teria vinte e poucos anos.

Eu sei que era rebelde e elas andavam d´olho! Uma vez, refilei e fui levada à presença da madre superiora que me cantou a canção de ouvir, calar e obedecer. Lembro ainda qual foi o meu pecado. Ter comido metade da carcaça do lanche que uma colega rejeitou por estar sem apetite. Aí fiquei sem lanche duas semanas! E era ver a irmã Electa olhando-me na hora em que as outras lanchavam e eu ali armada aos cucos!

Acerca disso, recordo que um dia ao desembarcar em Lisboa, em Alcântara, topei com ela. Senti um misto de espanto e o tal arrepio de medo. Sabem o que ela me disse? Tu, por aqui, sempre foste a minha ovelha negra! E eu confirmando a afirmação dela respondi: já estou livre graças a Deus, rebentei a amarra. Nunca mais a vi.

E foi necessária muita tarimba para eu descobrir o significado de “amizade particular”. Aquilo era uma coisa muita feia que elas traziam na cabeça e que usavam para nos rotular. Nós, crianças, sabíamos lá que existia tal “caca” na cabeça de uma freira a quem beijávamos a mão.

Foi necessário deixar passar uma infinidade de anos para escrever isto. Refiro-me a muitos sonhos abortados, mal aprumavam a estrutura. Foi uma época da minha vida em que andei à cata de um sorriso, um carinho, uma palavra de compreensão. Foi uma adolescência vivida e terminada sem ao menos ter nascido. Criada numa vulgaridade, num cinismo, numa repressão, repetindo a lição de sempre. Poderia ter havido outras regras menos rígidas a ser observadas, outra maneira de sair da apatia em que vivia mergulhada, outras hipóteses de viver em grupo, fazendo sentido, deixando portas abertas, luzes indicando obstáculos. Mas não. Só monotonia. Acordar ao bater da palma. Missa, refeição, aulas, refeição, recreios que não recreios, estudo, luzes apagadas após a oração da noite. Dia fechado!

E vinham as férias. O amor, o carinho, a liberdade. O fala fala, o conta conta, o desabafo sem parar. Mas, pelo meio a agonia do fim. Tudo isso, hoje, numas fotos a sépia, num álbum amarelecido pelo tempo que não dá gosto olhar!

Resumindo e concluindo. Demorou mas consegui dar o grito do Ipiranga. Fui pensionista num colégio. Aprendi coisas boas que até hoje uso. Suportei outras que até hoje me perseguem. Que Deus me perdoe e a elas. As minhas desculpas às colegas que se ambientaram. Fazer o quê? Deixo aqui um muito obrigada do coração à Irmã Glória, onde quer que esteja. Ela e só ela a razão que me levou a não saltar o muro!

 

 

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