Neste tipo de história é difícil encontrar o primeiro dos actos – Ernesto Che Guevara

0
11

Meio dia. O sol quente acusando nos corpos suados o vinho e a cerveja ingeridos em abundância pela maioria dos presentes. Uma galinha decapitada corre no terreiro esquecida de si. Mulheres em prantos dançando. Uma dá o mote:

– Tá, ngolo-ngôji,    

(Resiste, força de filamento)

Ngolo-ngôji ia samba!                      

(Força de filamento de íntimo!)

Tá, ngolo-ngôji,

(Resiste, força de filmento)

Ngolo-ngôji ia samba!                                

(Força de filamento de íntimo) 

Uasokana, uebula:                                                  

(Quem é casada, pergunta sempre)

Nganyala, ngiila kié ?

   (Senhor esposo, como fazer?)* 

  

 Ao que todas respondem em coro:

 Tá, ngolo-ngôji,

 ngolo-ngôji ia samba!

  

Num canto Mãe Ana observa em silêncio, ela sabe o que dizem as outras mas finge não perceber, as culturas e as religiões não se submetem aos paradigmas da razão dos outros. Mas por vezes algo extraordinário acontece. O coro continua, acompanhado por batuques que vão entrando cada vez mais próximos. O centro do terreiro transformando-se em puro frenesim, corpos rebolando no chão, vozes alteradas chamando, acusando. Não, não, nunca. Como poderia ela, logo ela, se deixar entranhar d´alma alheia. Mas se entrou; foi coisa nunca vista, a cabra degolada, o sangue se bebeu. Ela xinguilou mesmo, perante o espanto geral, o corpo contorcendo-se em espasmos a boca espumando. Na versão oficiosa tinha-lhe acometido um ataque de epilepsia. Mas ninguém acreditou, todos sabiam no seu íntimo. 

No fim do dia seguinte a brisa leve da tardinha trazia o cheiro do mar ao terreiro e tudo se aquietava como que antecipando a noite.

– Nzojiii! Nzoji, estás aonde?!

– Estou aqui Mãe, respondeu o petiz saíndo debaixo da mesa com a boca lambuzada de chocolate.

– Sempre a comer doces, daqui a pouco vamos jantar e aí é que eu quero ver, ralhou Mãe Ana.

– Dá um. Diz ela.

Nzoji deixa as mãos abandonarem os chocolates.

– São bons esses chocolates que o sr Brown deu filho?

Nzoji acena afirmativamente com a cabeça e pergunta: 

– São chocolates da terra dele? 

– Sim. 

– E há muitos lá?  Insiste o miúdo.

– Como grãos de areia na praia, responde a mãe sorrindo. As dores em seu ventre esquecidas agora momentaneamente. Ela sabe no seu íntimo que o homem de olhos claros semeou vida. Uma vida impossível, indesejável aos seus olhos e da sociedade em que vivem. Por isso logo se apressaram a submetê-la a tratamento, tratar de tirar essa semente maldita de seu ventre.  A consumação do ato aconteceu ali mesmo entre panos e velas, muitas velas. Foi através de tanto olhar para elas que Mãe Ana teve visitação, mas não foi um visitador qualquer não, foi mesmo ela que xinguilou (entrou em transe) com os kalundus (espíritos) ancestrais da Samba.

 

* Trecho em Kimbundo extraído do Livro Ilundo de Óscar Ribas. 

 

 

 

 

O MEU COMENTÁRIO SOBRE ESTE ARTIGO

Por favor escreva o seu comentário!
Por favor coloque o seu nome aqui
Captcha verification failed!
Falha na pontuação do usuário captcha. Por favor, entre em contato conosco!