O diadema

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TI

TI

Era pelo Pentecostes, sob o sol tépido de uma solene tarde de procissão.

A cidade enfeitara-se de colchas nas varandas e ajoelhava-se, em atitude respeitosa, à passagem da resplandecente imagem de Santa Reginalda, cujo andor era conduzido aos ombros de quatro homens compenetradíssimos e vestidos de opas escarlates.
No ar estalavam foguetes ensurdecedores. E o imenso cortejo desfilava ao som compassado da filarmónica. Para trás ficava o fumo odorífero do incenso e o aroma das flores que atapetavam as ruas e adocicavam o burgo.
Homens, mulheres e crianças, dispostas em duas alas, caminhavam em fervorosa prece por entre calvícies de padres decrépitos e ventres salientes de empertigadas autoridades civis e militares.
Sob o pálio, os dourados da estola do pároco reluziam ante o olhar baboso das beatas.
Os olhos atentos de Felisberto fitavam, dardejantes, o diadema que cingia a cabeça da imagem de Santa Reginalda. Que esplendor aquele diadema! Todo em ouro e guarnecido de diamantes que faiscavam ao sol!… Maravilha!
Felisberto deu o sinal e os seus homens tomaram posições: alguns misturaram-se disfarçadamente na procissão, enquanto os outros acompanhavam lateralmente o préstito, caminhando, a custo, por entre silenciosas gentes que, de cabeças erguidas, se acotovelavam nos passeios.
Bruscamente um movimento insólito veio perturbar tudo e todos. E gerou-se tamanha confusão: o pálio rolou, balouçando como um navio, e desapareceu; ao mesmo tempo, o andor de Santa Reginalda tombou no chão com grande estrondo, ficando a santa imagem desfeita em cacos…
O tumulto era agora incontrolável!
Um caudal de gente ondeava num mar de cabeças em ruidosa desordem… Havia gritos delirantes, correrias loucas, gestos grotescos, mãos que se levantavam pedindo clemência aos céus…
… Um velho gritava que o fim do mundo chegara! Uma mulher vesga persignava-se em postura beatífica! Um padre olhava, com lúgubre tristeza, a sua sobrepeliz que se rasgara! Uma criança, que antes desfilava vestida de anjo, berrava agora à procura de uma das suas asas!…
Agentes policiais, colocados à frente do cortejo, esforçavam-se para se opor à irresistível maré de gente. Mas em vão. E num abrir e fechar de olhos, o cordão policial foi quebrado pela fúria da multidão espavorida…
Felisberto foi um dos primeiros a pôr-se em fuga, levando na mão o flamejante diadema. Um dos polícias surpreendeu o fugitivo e, empunhando um revólver, gritou em altos berros:
-Agarrem-me esse homem! Agarrem-me esse homem!
Mas a sua voz fora abafada pelo pânico da multidão. E, em poucos segundos, o polícia havia perdido de vista Felisberto, o qual, com invulgar rapidez, fez passar o diadema para as mãos de um seu companheiro; este, por sua vez, passou o precioso adorno para o bolso do sobretudo de um outro, numa vertiginosa ação encadeada.
Enquanto o pandemónio se desenrolava, já Felisberto e o seu bando se apressavam em direcção ao cais. Aí chegados, saltaram para dentro do “Ralph”, soltaram amarras e, a toda a velocidade, navegaram para fora da baía.
Quando o veleiro já se encontrava a 90 milhas da costa, Felisberto e os seus homens já se abraçavam efusivamente pelo êxito da operação realizada naquela ilha, a qual ia ficando para trás, até desaparecer completamente na linha do horizonte.
No interior do iate o contentamento de todos misturava-se agora com a embriaguez delirante do whisky:
– Estamos ricos! Estamos ricos!
E todos fitavam o cintilante diadema que transluzia sobre a pequena mesa.
Lá fora, a noite negrejava no imenso oceano.
O barco, engolido de névoa, rasgava furtivamente as águas em demanda de um porto mais adiante.
Felisberto olhava o diadema com uma alegria perversa, enquanto os seus homens, encolhidos em beliches improvisados, adormeciam placidamente.
Minutos depois, Felisberto aproximou a lanterna da mesa, entalou uma lente no olho esquerdo e, com gestos peritos, pôs-se a avaliar as jóias.
De súbito, um tremendo murro fez acordar os que dormiam levados pelo balancear do “Ralph”. E todos ouviram o chefe a praguejar alto:
– PORRA! PORRA PARA A SANTA!

Com os olhos injectados de raiva, Felisberto, ante os olhares consternados dos seus companheiros, descobria que o diadema era uma falsificação. Perfeita!… 

 

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