Breve recordação do Marianinho

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Naquele tempo a vida era um vale de lágrimas em Portugal e a pobreza agradava a Deus Nosso Senhor. Vivia-se de penúrias várias, a taxa de mortalidade infantil era muito elevada e eu não sabia.

            O que sabia, e não esqueço, é que os bebés morriam às catadupas na vila da minha infância. Só num mês morreram três na minha rua. Mortis causa: o garrotilho. Tinha eu seis anos de idade e lembro-me perfeitamente, pois que o meu primeiro confronto com a morte foi com o Marianinho, o bebé que se finara precisamente no dia em que completava um aninho de vida…

Mágoas tamanhas. No quarto, apinhado de familiares e vizinhos, corria uma sussurração lenta, e havia no ar um cheiro a incenso e a fenol. As mulheres choramingavam, os homens pigarreavam, acabrunhados, no corredor.

Estou a ver o Marianinho, rostozinho lívido, covinha no queixo, olhinhos fechados num aparente doce repouso, com as mãozinhas sobrepostas, metido num caixãozinho branco forrado de cetim, com fitas brancas recaindo em pregas franjadas… À cabeceira do mortinho havia um altar, duas velas e um copo de água benta com um raminho de alecrim a servir de hissope para as pessoas se benzerem e aspergirem o infeliz.

 Um sentimento de dor pairava naquele quarto funerário, por cuja janela entrava um raio de sol triste.

A vizinha Maria do Carmo, mãe da criança morta, com a face lavada em lágrimas, parecia a imagem da Mater dolorosa que estava num dos altares da igreja Matriz.  

Eu fitava, horrorizado, o Marianinho. Minha mãe aproximou-se de mim, estendeu-me os braços e envolveu-me num abraço, dizendo:

            -É um anjinho que vai para o céu…

            -Mas o Marianhinho não tinha um Anjo da Guarda? Porque é que ele morreu? – perguntei com inocente impaciência.

            Não obtive resposta. E ali ficámos, cabisbaixos, tristes e em compungido silêncio, olhando o bebé pela última vez.

            A partir desse dia, e numa altura em que me preparava para fazer a Primeira Comunhão, comecei a pôr em causa o que aprendera na catequese, e coloquei de parte do meu catecismo, “Doutrina Cristã”, que tinha gravuras que mostrava claramente o que era o céu (que tinha celestiais nuvens brancas) e o inferno (com inquietantes labaredas)…

            Uma abstração e uma mágoa indefinida tomaram conta de mim. Eu estava longe de imaginar que, então (anos 50 do século passado), havia uma média de duas mortes por cada cinco nados vivos. (Hoje, felizmente, Portugal está entre os 10 países do mundo com a mais baixa taxa de mortalidade infantil, segundo relatório da UNICEF).

            Mas naquele tempo de pé descaço da ditadura salazarista era tudo à conta de Deus. As famílias eram devotas e numerosas (em média, uma mulher tinha entre 5 a 7 filhos; hoje é o deserto demográfico: 1,3 filhos por mulher) e havia analfabetismo até dizer chega. Recebíamos a morte com entristecida resignação cristã. A morte era “uma doce irmã do sono”, como dizia o enigmático padre Genuíno. E eu acreditava. Acreditava até àquele dia em que vi o Marianinho metido naquele triste caixãozinho branco forrado de cetim.

 

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