E o Natal foi-se…

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O Natal foi-se. Tudo se foi. A família, vinda de longe, partiu. A alegria foi-se. A ansiedade das crianças foi-se. A paciência dos adultos foi-se. A casa ficou em pantanas. Sobraram flores murchas, garrafas vazias de espumante, pedaços de bolo-rei, algumas passas, restos de marron-glacé, esqueletos de perú e muito bacalhau. Presépios desarmados. Musiquinhas caladas. Caruma nas escadas. Árvores na rua. Luzes apagadas. Baixelas, talheres, toalhas e afins, esperando limpeza e arrumação. Uma canseira!

Sinceramente, desde  há muitos anos, deixei de gostar do Natal. Que Deus me perdoe, mas sinto-me atordoada, indisposta, sem uma explicação. E nem estou incluida nessa doideira do Natal, felizmente os últimos natais foram passados noutros lugares.

Penso que o Natal é a época do ano em se se mente mais, em que a hipocrisia anda no ar. Quase lhe tocamos. Tem cheiro, cor e até sabor. Mentem os mais velhos, comprando coisas para os amigos e família. Mentem estes, especialmente os jovens, fingindo felicidade, recebendo coisas que detestam. Mentem as crianças, já com certa diplomacia, agradecendo um presente não desejado. E mentem mais os pais que se travestem de pai Natal. E os filhinhos continuam mentindo fingindo acreditar. E, mentem muitissimo quando convencem as crianças a crer que o menino Jesus lhe trouxe aquela traquinada toda. Mas como explicar a um menino a razão por que o Jesus não trouxe nada a outro menino pobre? O que pensará uma criança perante tal descriminação?

E o Natal foi-se. E nós ficamos ao fundo dos acontecimentos, como uma carta fora do baralho. Nem deu tempo de soprar ventura, ternura e entusiasmo. Nem deu tempo para rabiscar algo importante. Falando de Jesus, que, parece, está a ser banido da sua própria festa.

E nas linhas ponteadas, encimadas de letras, nos braços perdidos da hipérbole, nada de novo. Para mim houve felicidade, como sempre, na companhia da família que veio de longe e nos encontramos algures. Não há Natal sem esses momentos de ternura e amor. Mas tudo é breve e breve nos encontraremos em qualquer aeroporto da vida. Cada qual partindo para destino diferente  no meio de abraços e promessas de novo encontro, sempre cumpridas. Isso sim, o meu Natal, a minha maneira de ser feliz.

Antigamente ser feliz era um género de missão, uma conquista, exigia sacríficios. Hoje, não. Ser feliz parece uma obrigação. Observa-se que muita infelicidade há, marcada por uma alegria obrigatória. A felicidade de hoje, num mundo louco, mais consiste em não reagir: não ver, não ouvir, não falar. É uma lista de negações. Ser feliz, obrigatório será não ser pobre, não olhar os pobres, não ter doenças graves, não ouvir notícias tristes, não ler jornais, não ter coração. Hoje, ser feliz é ser um andróide sem sentimentos.

E o Natal foi-se. É sabido que durante essa época, os ricos estenderam um pouco a mão, umas caridadezinhas. O pobre ganhou uma roupita melhor, confortou o estômago com uma comidinha diferente. Mas, e agora que o Natal se foi? Lá estão ao frio, à chuva, barriga a dar horas. E isso dói muito e muito. Como dói, meu Deus! Pelas noites geladas vê-los envoltos em trapos, dentro de caixas de cartão, sem comida, sem amor, sem direito a sonhar!

E, aqui deixo um episódio contado por um jornalista que, abordando um sem-abrigo lhe perguntou o que era mais difícil de suportar: a fome ou o frio. Resposta – “o mais difícil é ver o olhar de desprezo de quem passa”. Esta resposta é uma facada no coração que jamais cicatrizará. Comigo foi o que aconteceu. Em situações várias ele está lá, em nome de tantos, dando uma explicação cabal, esquecendo o seu caixote, a sua fome, a sua miséria. Pondo em relevo o seu sentimento de vergonha e raiva. Aquela resposta ficou rolando na minha cabeça como um filme sem fim, sem meio, sem princípio.

E, agora, pergunto eu, para quê tanto estardalhaço pelos natais? Aquela história de sermos todos irmãos que significado tem?

Esta é a crónica, meio à toa, aquela crónica que nem quero reler.

 

Nota: por que será que pelo Natal, neste nosso país, só se ouvem musiquinhas inglesas irritativas? Seria mais coerente apresentar algo “made in Alemanha”. É o que está a dar!

 

 

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