Maria de Lurdes Pereira trabalha a arte do papel recortado há 70 anos – Gosto, paciência, persistência

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Com uma simples tesoura de bicos afiados, Maria de Lurdes Pereira é capaz de transformar uma folha de papel de seda numa verdadeira obra de arte. No Dia Mundial do Artesão, que se assinalou a 19 de março, fomos conhecer melhor o trabalho desta faialense, cujas obras têm corrido mundo, sendo que uma delas ocupa mesmo um lugar de destaque na coleção de presépios de Maria Cavaco Silva. Hoje com 79 anos,Maria de Lurdes começou a recortar papel ainda criança, para ajudar a irmã. Cedo, simples papelinhos para embrulhar bombons se  transformaram em arte, pela perfeição do trabalho feito minuciosamente nas frágeis folhas de papel. Quanto ao segredo, a artesão explica que o essencial é ter “gosto, paciência e persistência”. E umas verdadeiras mãos de fada, acrescentamos nós.

Entrar na sala de Maria de Lurdes Pereira é descobrir uma espécie de “caverna de tesouros”. Os quadrados onde estão preservadas as folhas de papel recortadas de tal forma que parecem bordados espalham-se pelas paredes, onde também estão as pinturas a óleo desta artesã. Em expositores, mil e uma conchinhas de mil e uma cores e mil e um feitios formam bonecas e animaizinhos magicamente arranjados pelas habilidosas mãos de Maria de Lurdes. Em álbuns, que tem gosto em mostrar, repousam para a memória futura muitos dos seus trabalhos, com as referências aos vários prémios de artesanato que já ganhou, ao lado dos recortes de jornais, alguns de âmbito nacional, como o Público, que se interessaram em saber mais sobre a artesã. 

Começamos a folhear as recordações de Maria de Lurdes para descobrirmos que é, também, uma doceira de mão cheia. Apesar de deliciosos os seus doces são, no entanto, um incentivo à dieta: é que não se parecem com doces, mas antes com joias, tão primorosamente decorados.

Nascida na freguesia da Matriz, onde ainda reside, Maria de Lurdes conta que começou a recortar papel ainda criança, quando a irmã lhe pediu ajuda na preparação dos bombons para o casamento do irmão: “via como ela cortava, peguei num papel e comecei a fazer. Gosto de fazer as coisas perfeitas. Às tantas ela disse: ‘Já fazes melhor que eu’. Ela não me ensinou, porque a minha casa era mais de se fazer do que de se aprender. Quando dizia à minha mãe que tinha visto alguma coisa bonita, ela dizia ‘faz com a tua mão’, E eu comecei a fazer”, diz.

Mais tarde veio o marido, as filhas e um emprego como telefonista nos Correios. O recorte, a pintura e o trabalho em conchas ficaram para trás em nome da labuta diária. Quando perdeu o marido e se reformou tinha ainda as filhas para formar. “Deitei mãos daquilo que sabia fazer”, conta, explicando como os seus trabalhos de artesanato e a venda de doces para fora a ajudaram nessa altura.

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A arte de recortar papel com o grau de perfeição que Maria de Lurdes lhe imprime requer uma minúcia extraordinária, implicando dias de trabalho e muito raramente permitindo erros: “é raro começar a cortar um e chegar ao fim intacto. Quanto mais se vai cortando, mais frágil vai o papel ficando, e quando se rompe a solução é deitar fora e começar de novo”, conta. Pela sua fragilidade, o papel de seda não permite que a artesã risque o que pretende cortar. Ela faz, por isso, um desenho à parte, que a guia nesta delicada tarefa, durante a qual, conta, não fala sequer com ninguém, tal o nível de concentração que lhe exige.

Quanto à inspiração, esta vem de qualquer lado, desde um tecido bonito até à arte sacra: “muita missa mal ouvida eu ouvi… Estava olhando para os altares, para os retábulos, vendo os recortes… Vinha para casa, com um lápis desenhava num papel, e depois, vendo esse papel fazia a olho com a tesoura”, conta.

 

 Mulher de muitas artes

Para além do papel recortado, Maria de Lurdes dedicava-se a outras formas de artesanato. Pintou em tela, vidro, tecido de organdim e seda e fez muitos trabalhos em conchas, destacando-se a sua coleção de bonecas: “ia juntando conchinhas, algumas pessoas também me davam e depois fazia as bonecas. Numa concha via uma mala para uma boneca, noutra um chapéu…”, explica.

Também nos doces que chegou a fazer para fora é visível a sua sensibilidade artística: fez bombons decorados com paisagens do Faial ou com flores perfeitamente desenhadas, miniaturas de animais e meninos para as crianças e até a reconstituição em doces de comidas típicas faialenses, como o queijo, os inhames, a morcela, a linguiça ou os torresmos. 

O papel recortado foi, no entanto, aquilo que mais se destacou. Maria de Lurdes já enviou trabalhos para colecionadores em São Miguel, no continente português, em França e nos Estados Unidos. Soma vários prémios em concursos de artesanato e marcou presença na exposição “Mestres Artesãos do Século”.

De entre as suas dezenas de trabalhos há um muito especial: um presépio que, a pedido de um colecionadores com quem contacta, foi enviado em 2011 à esposa do presidente da República, Maria Cavaco Silva, cuja coleção de presépios é bastante conhecida. Maria de Lurdes guarda religiosamente a fotografia da obra, ao lado de uma carta, que pudemos ler, escrita pela primeira-dama onde esta elogia a qualidade do trabalho da artesã faialense, contando que este é o seu primeiro presépio em papel recortado.

A nosso pedido, Maria de Lurdes demonstrou durante alguns minutos este trabalho tão delicado e tão pouco conhecido. No entanto, a artesã já há muito que pôs de lado esta atividade: “hoje a vista já não dá para fazer, mas quando estava triste era isto que me distraía e afugentava a tristeza da minha vida”, conta.

Hoje, durante o dia Maria de Lurdes confessa que poupa os seus cansados olhos para uma atividade que não dispensa todas as noites: assistir ao telejornal e à novela. 

 Nos seus álbuns, nas paredes da sua casa e em exposições em vários locais para lá desta pequena ilha, estão os seus preciosos tesouros, obras de arte dignas de serem apreciadas por todos.

Por cá, vale a pena visitar a exposição permanente do Museu da Horta com algumas das peças de Maria de Lurdes, que mostram bem por que razão a palavra “artesão” começa com a palavra “arte”. 

 

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