No Centenário da República Portuguesa (34)

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Retalhos da nossa história – XCIX

39. Governador José Rodrigues da Silva Mendes

Correspondendo à sugestão de que só um militar de prestígio deveria estar à frente do distrito da Horta, o ministro do Interior nomeou, a 3 de Março de 1937, o capitão José Rodrigues da Silva Mendes para o cargo de governador civil, exonerando, no mesmo dia, o antecessor Dr. José Rodrigues de Matos.

A posse decorreu no gabinete do ministro Pais de Sousa no dia 19 e, quatro dias depois, o capitão Silva Mendes embarcava no vapor “Carvalho Araújo” com destino à Horta onde chegou no dia 30 desse mês.

Assumiu funções no dia imediato, numa cerimónia em que discursaram o governador civil substituto Dr. Freitas Pimentel, o secretário-geral Dr. Albuquerque de Freitas, o comissário do Governo junto do Banco Faial Dr. Cabral de Miranda, o presidente da Junta Geral do Distrito Dr. José da Silva Ribeiro Peixinho, o comandante militar coronel Álvaro Soares de Melo, o chefe de Repartição de Finanças Manuel José Antão, o advogado e conservador do registo Civil Dr. Raposo de Oliveira, o ouvidor eclesiástico Padre José Pereira da Silva e, naturalmente, o governador civil.

Natural de Cantanhede, onde nasceu a 23 de Novembro de 1893, o capitão Silva Mendes possuía já uma assinalável experiência administrativa e política.

Alferes miliciano em 1917, integrou o Corpo Expedicionário Português em França na I Guerra Mundial, exercendo, depois da revolução do 28 de Maio, os cargos de administrador nos concelhos de Figueiró dos Vinhos, Nazaré e Pombal e de governador civil nos distritos de Aveiro, Leiria (duas vezes) e Beja.

Além da sua experiência governativa, Silva Mendes estava certamente prevenido da situação política que vinha encontrar. Era ele o desejado militar de prestígio que, sabedor da influência deletéria dos dois grupos políticos que há muito se digladiavam no seio da União Nacional, saberia colocar-se numa posição superior e equidistante que lhe permitisse pacificar a vida política e social no distrito da Horta. E os primeiros tempos da sua acção à frente do Governo Civil foram de paz e tranquilidade. Pelo menos é isso que transparece nas muitas cartas particulares que escreve ao ministro, a quem respeitosamente trata “por prezadíssimo amigo”. Confessa-se mesmo desvanecido com as constantes manifestações de consideração e apoio que frequentemente lhe tributavam, não só nas ilhas do Faial e Pico, mas também nas Flores e Corvo.

 Visitou estas duas, pela primeira vez, em princípios de Setembro e achou-as “muito atrasadas e a precisarem de vários melhoramentos”[1]. Foi recebido com enorme entusiasmo, presidiu a “sessões de propaganda doutrinária nas vilas do Corvo, Santa Cruz e Lajes das Flores”, marcadas por entusiástica adesão e “grande concorrência de povo”. Numa das cartas dirigidas ao Dr. Pais de Sousa salienta que “esta gente continua a não saber o que há-de fazer para me ser agradável”, e que, numa recente sessão pública, o presidente da Associação Previdência Operária o tratou “por uma forma elogiosa, com gerais aplausos da assistência; os estrangeiros tratam-me com marcada simpatia e respeito e até os clubes desportivos, que aqui têm uma decisiva importância política, porque movimentam milhares de pessoas, apesar de não serem agremiações políticas, me patenteiam uma carinhosa simpatia”[2]. Por isso, “sem falsa modéstia, que também é defeito” transmite ao ministro a sua convicção de que não tem desmerecido da confiança com que ele o distinguiu ao nomeá-lo governador civil da Horta, onde “parece que se atenuaram de tal forma as divergências políticas que toda a gente está ao lado do Governo, até aqueles que, há cerca de um ano, o atacavam o mais que podiam”. Tudo isto, finalizava o governador, “me satisfaz e me dá a convicção de que tenho servido bem o Estado Novo e V. Ex.ª, mas infelizmente a humidade excessiva faz-me lembrar de que sou antigo gazeado e que não me posso aguentar aqui muito tempo”[3].

Se é certo que a “maldita humidade” é uma constante nas suas cartas – justificadora, aliás, de prolongadas ausências no Continente – já o optimismo que exibe acerca da situação política é deveras excessivo. As tréguas, começaram a ser quebradas ainda no Verão de 1937 quando, no seio da União Nacional, estalou um conflito entre o grupo antigo e o grupo moderno, despoletado por uma questão que colocou em litígio o governador Silva Mendes e o director de Obra Públicas engenheiro Ângelo Corbal Hernandez. As causas visíveis do conflito abrangiam três aspectos:

-atraso no pagamento aos trabalhadores jornaleiros das obras públicas, por incúria e desleixo do tesoureiro;

– exigências feitas à população rural quanto ao trânsito de carros de bois, vítima de prepotências e de ilegalidades praticadas por dois chefes de conservação de estradas na ilha do Pico ;

– e exigência de plantas e licenças para qualquer construção e até para insignificantes reparações em pobres casas.

 O incidente, que originou sindicâncias determinadas pelo governador civil e pelo ministro das Obras Públicas, acabou por colocar “em rixa aberta um funcionário público de comprovada competência ( Eng.º Corbal) e uma autoridade administrativa com larga folha de bons serviços”(capitão Silva Mendes). Este ainda tentou sanar a questão recorrendo ao diálogo com o director das Obras Públicas para que transigisse no cumprimento da lei claramente excessiva para as pequenas localidades das ilhas do distrito e fosse menos protector de funcionários prepotentes que excediam as suas funções. Como não o conseguisse demover, valeu-se de um intermediário, o Dr. Raposo de Oliveira, pessoa que “tinha bastante ascendente sobre o engenheiro Corbal”, a quem expôs as suas razões e a quem apelou para que dele obtivesse algumas cedências, de forma a solucionar-se o problema. Ora, aconteceu que o Dr. Raposo de Oliveira – lugar-tenente do grupo antigo (do Dr. Neves, portanto) e do qual fazia parte o Eng.º Corbal – em vez da intermediação pedida, deturpou as palavras do governador e lançou o fósforo à fogueira! Estava reacendida a luta entre os dois grupos.

Uma extensa nota informativa – não assinada mas feita por um inquiridor que veio à Horta provavelmente na segunda metade de 1938 – analisa este assunto em pormenor e, procurando ir mais além do mero litígio entre a autoridade máxima do distrito e um director de serviços, encontra inevitavelmente os dois grupos políticos que se diziam defensores da política do Estado Novo e descobre “que estão afastados um do outro por antigos e deploráveis conflitos e presentemente estão completamente incompatíveis”. O choque entre o governador e o director de Obras Públicas não foi mais do que um episódio desta luta. A causa determinante teria de responder à seguinte questão: “por que desejava o grupo do sr. Conservador [Raposo de Oliveira] atirar a terra o Governador Civil, tal qual fizera em pouco tempo, desde que perdera o exclusivo domínio da política da terra, ao governador Dr. Luciano Machado Soares e ao Dr. Rodrigues de Matos?” E a resposta vem logo de imediato: “porque, como os seus dois antecessores, o actual governador tem mantido e seguido a orientação superiormente decidida, pelo Governo e pela União Nacional, no sentido de obrigar os homens de um e outro grupo a perderem a ideia de predomínio, levando-os a trabalhar honestamente dentro do espírito do Estado Novo.”

Mas a baixa intriga e a fraca moral, conseguiram indispor o conciliador e competente governador civil com o zeloso e sabedor director de Obras Públicas e, desse embate, sucederam outros graves conflitos que envolveram vários protagonistas e que foram bastante prejudiciais para os interesses das populações.

Aqui se insere o que aconteceu a 4 de Junho de 1938 na reunião da comissão distrital da União Nacional que, dentro do espírito da equitativa distribuição de lugares tinha uma composição paritária, era composta por membros dos dois grupos já referenciados. O presidente Dr. António Terra era médico e amigo do Dr. Neves, presidente da Câmara Municipal da Horta e procurador dos municípios açorianos à Câmara Corporativa; o vice-presidente Dr. Freitas Pimentel, também médico, estava investido desde 1935 no cargo de governador civil substituto e assumia a efectividade sempre que os titulares estavam ausentes, o que era frequente; sabe-se que pertencia ao grupo moderno, de que seria um dos líderes juntamente com o coronel Álvaro Soares de Melo, tendo do seu lado, entre outros, o presidente da Junta Geral Dr. Ribeiro Peixinho, o comandante da Legião Portuguesa, tenente João Costa e o delegado dos Serviços de Censura, tenente Monteiro de Freitas. O que sucedeu nessa famigerada reunião da comissão distrital da U.N. ainda hoje está por esclarecer. Os partidários do grupo antigo acusaram o Dr. Freitas Pimentel de ter difamado o Engenheiro Nobre Guedes, presidente da comissão executiva da União Nacional, ao passo que aquele e os seus amigos se defendiam do que consideravam uma calúnia inventada pelo Dr. Terra. Facto é que a questão foi imediatamente comunicada ao visado numa carta que lhe enviou o Engenheiro Corbal, seu amigo e antigo colega universitário, e à própria comissão executiva da U. N., que instaurou um inquérito feito pelo vogal da mesma, Dr. Madeira Pinto, que veio à Horta com esse objectivo. Auscultou diversas personalidades de um e outro grupo, acabando por elaborar um minucioso e extenso relatório, onde não acusa abertamente ninguém, mas insinua uma eventual culpabilidade do Dr. Freitas Pimentel que, levando o caso a tribunal, acabaria por ser ilibado, mas só em 1940.

 O governador Silva Mendes, logo que tomou conhecimento do caso, procurou saná-lo localmente, realizando diligências, ouvindo os principais intervenientes e tomando decisões, sempre convicto da inocência e da honorabilidade do seu braço-direito Freitas Pimentel. Em várias cartas para o ministro Pais de Sousa dá conta do que fez – foi ao ponto de demitir o Dr. António Terra de presidente da Câmara Municipal – e não hesita em lembrar ao ministro do Interior que “a falsa queixa contra o Dr. Pimentel foi uma manobra política para o inutilizarem perante a União Nacional e para que, depois de várias habilidades, assaltarem as comissões administrativas”, de modo que “a política da Horta voltasse a ser a vergonhosa pouca vergonha [sic!] que foi durante largos”[4]. Sucedeu, porém, que a U.N. demitiu da vice-presidência o Dr. Freitas Pimentel, o que gerou um fortíssimo movimento de protesto nas várias ilhas do distrito e fez com que o governador – que, fugido à humidade açoriana, estava a passar o Inverno em Leiria – ao saber que “venceu a infame cabala urdida contra o Dr. Pimentel” comunicasse ao ministro que o seu dever era “protestar contra o que se fez”, não voltando “às ilhas sem que seja feita Justiça”[5]. Quando esta aconteceu, já o Governo Civil da Horta tinha outro titular e o capitão Silva Mendes prosseguia a sua carreira política no exercício de outras funções, designadamente nas de deputado eleito pelo círculo de Leiria em 1957.

Faleceu em Turquel no dia 13 de Dezembro de 1988, com 95 anos de idade.


[1] AGCH, Relatório Confidencial do Governador de 27 Setembro 1937

[2] IAN/TT, Ministério do Interior, Gabinete do Ministro, maço 501, carta de 10 Junho 1938

[3] Idem, Ibidem, carta de 20 Junho 1938

[4] Idem, Ibidem, maço 501, carta de 27 Julho 1938

[5] Idem, Ibidem, maço 504, carta de 21 Dezembro 1938

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