O distrito da Horta e a drástica reforma administrativa de 1867

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Retalhos da nossa história – CVII

Em períodos de profunda crise económica e financeira que ciclicamente afligem o povo português e que exigem imediatas medidas de poupança e reestruturação, a reforma da administração local autárquica tem assumido, por vezes, natureza prioritária.

Sem pretender discutir a pendular repetitividade da história, julgo interessante registar o que se passou no distrito da Horta quando, em 1867, Portugal se viu a braços com mais uma das muitas situações graves que esgotavam o erário público e determinavam o recurso a mecanismos de profunda austeridade financeira.

Presidido por Joaquim António de Aguiar, o Governo pôs em marcha uma série de reformas que visavam melhorar as condições económicas do País e extinguir ou atenuar o assustador défice das finanças do Estado. De entre as várias medidas tomadas – a começar, obviamente, pelo acréscimo da carga fiscal – avultou a Lei da Administração Civil, de 26 de Junho de 1867. Este diploma que ficou conhecido pelo Código Martens Ferrão – o ministro do Reino que foi seu autor – decretava uma profunda reforma administrativa que “varria do mapa quase duas centenas de concelhos (!), a bem da racionalização do espaço nacional e da contenção da despesa autárquica”, mas bulia “com seculares interesses localistas.”[1]Apesar de a lei ser de 26 de Junho, o mapa final da divisão do território só foi publicado a 10 de Dezembro de 1867, depois de previamente auscultadas as diversas autoridades distritais e locais.

 Assim se explica que o parecer do governador do distrito da Horta haja sido enviado ao ministro do Reino em 19 de Outubro e que, na sua elaboração, tenha seguido “as instruções desse ministério com data de 11 de Julho do corrente ano”. Informava ter consultado “a Junta Geral, os administradores dos Concelhos, Câmaras Municipais e Juntas de Paróquia deste distrito sobre a divisão territorial”. Enviava juntamente “os mapas das paróquias civis, dos concelhos e do distrito” e para “elucidação” do ministro prestava vários esclarecimentos que, por muito extensos, a seguir se resumem:

– “O distrito ocidental dos Açores, com a sua capital na cidade da Horta, deve ficar composto, como o actual distrito administrativo da Horta, das quatro ilhas do Faial, Pico, Flores e Corvo”.

– “Estas ilhas devem formar 4 concelhos – 1 no Faial, com sede na cidade da Horta – 2 na ilha do Pico, com sede nas vilas da Madalena e Lajes – e 1 nas ilhas das Flores e do Corvo, com sede na vila de Santa Cruz”.

Para melhor clarificar a sua posição, o chefe do distrito passou a tratar “por ilhas cada um destes concelhos, bem como das paróquias civis que o deviam compor”.

Assim, no concernente ao Faial, referia que “esta ilha deve formar, como actualmente, o concelho da Horta, com a sua sede na cidade da Horta”. Ficava com 6. 220 fogos e era “a única divisão admissível nesta ilha e sobre a qual há o mais completo acordo de todas as corporações e funcionários”.  

Quanto às paróquias civis (o equivalente às actuais freguesias), o parecer do governador apontava para a existência de apenas quatro:

“1.ª As paróquias eclesiásticas de S. Salvador (Matriz), Angústias, Conceição, na cidade da Horta – e Flamengos, paróquia rural, com sua sede em S. Salvador”. Esta divisão – acrescentava o conselheiro Santa Rita – mereceu a concordância das “respectivas juntas de paróquia, Câmara Municipal, administrador do Concelho e Junta Geral (…)”

“2.ª As paróquias eclesiásticas da Feteira, Castelo Branco e Capelo, com sede em Castelo Branco”. Neste caso, prevaleceu “a opinião da Junta Geral, do administrador do Concelho e da Junta de Paróquia de Castelo Branco”. Já a Câmara Municipal, embora concordando “que estas três paróquias eclesiásticas deviam formar uma paróquia civil”, defendia a sua sediação na Feteira, no que era acompanhada pela respectiva Junta de Paróquia que ainda lhe acrescentava a freguesia dos Flamengos. Outra opinião tinha a Junta de Paróquia do Capelo que defendia uma paróquia civil formada pelas paróquias eclesiásticas de Castelo Branco, Capelo e Praia do Norte, com sede no Capelo. Para o governador esta era uma posição “insustentável porque a paróquia de Castelo Branco é muito mais importante que a do Capelo” e, tanto esta como a da Praia do Norte não estavam “no caso de serem a sede de uma paróquia civil, já pela sua riqueza, já pela absoluta falta de pessoal habilitado”.

“3.ª Praia do Norte, Cedros e Salão, com a sua sede nos Cedros.” Esta divisão mereceu a concordância de todas as corporações e funcionários, até da Junta de Paróquia da Praia do Norte, uma vez que não viu “aceite a divisão que ela indicava primeiramente de Castelo Branco, Capelo e Praia do Norte, com sede no Capelo”.

“4.ª Ribeirinha, Pedro Miguel e Praia do Almoxarife, com sede em Pedro Miguel. À excepção da Junta de Paróquia da Praia do Almoxarife que queria ter a sede na sua paróquia eclesiástica, esta divisão também reuniu a concordância “de todas as corporações e funcionários”.

Se no Faial não houve problemas de maior, já a divisão administrativa da ilha do Pico “foi bastante disputada entre os três concelhos da Madalena, S. Roque e Lajes”, abundando as representações, as polémicas e os debates nem sempre serenos e racionais que se podem apreciar na imprensa faialense que então se publicava. O comedido parecer do governador António José Vieira Santa Rita informava que a Câmara Municipal de S. Roque era “a favor de um só concelho com a sua sede em S. Roque ou antes no Cais do Pico onde se acham as repartições públicas do actual concelho”. Contra S. Roque se pronunciaram as Câmaras Municipais da Madalena e das Lajes que defendiam a existência de dois concelhos nelas sediados e que a si anexariam, de forma quase equitativa, as paróquias eclesiásticas que àquele pertenciam.

O principal fundamento – escrevia o governador no seu parecer – “que aconselha a divisão da ilha em dois concelhos é a sua grande extensão e a falta de uma povoação que seja verdadeiramente central para todas as paróquias civis”. Se estivessem preenchidas estas duas circunstâncias essenciais, o governador entendia que “a ilha não devia formar mais do que um só concelho como propunha a Câmara Municipal de S. Roque”. Assim optava pela constituição de dois concelhos: oriental e ocidental “que ficam com o número de fogos que a lei exige – compostos cada um de três paróquias civis – quase com igual população, território e riqueza, constituem na actualidade a divisão mais cómoda e mais em harmonia com a extensão da ilha, com as suas principais povoações estabelecidas no litoral e com as grandes distâncias que as separam, muitas delas ainda hoje difíceis de atravessar pelas péssimas estradas”. Eram estas, em síntese, “as razões fundamentais que indicam esta divisão e aconselham a colocação das suas sedes nas vilas da Madalena e Lajes, com preferência a S. Roque.

Surpreendentemente, quanto às paróquias civis que deviam integrar cada um dos dois sugeridos concelhos, o governador garante que “há um completo acordo”, pelo que se limitava a indicar a respectiva divisão.

Assim o concelho Ocidental seria formado pelas paróquias de Madalena (integrando Bandeiras, Madalena e Criação Velha); de São Mateus (Candelária e São Mateus) e de Santo António (São Roque, Santo António e Santa Luzia).

Por seu lado o concelho Oriental compor-se-ia das paróquias civis de Lajes (São João, Lajes e Ribeiras); de Piedade (Calheta e Piedade) e de Prainha (Santo Amaro e Prainha).

As ilhas de Flores e Corvo viam suprimidos os seus três concelhos (Santa Cruz, Lajes e Corvo) e passariam a ter apenas o de Santa Cruz que “era a povoação mais importante das duas ilhas”.

Esta solução mereceu a concordância da Junta Geral, do administrador do concelho de Santa Cruz e das Câmaras Municipais de Santa Cruz e Corvo.

A Câmara Municipal das Lajes pedia a conservação do seu concelho e o administrador do concelho do Corvo também não abdicava do seu. Todavia, esclarece o governador, “nada justifica a conservação destes dois concelhos” que “apesar de anexados ao de Santa Cruz, este fica apenas com 2.533 fogos, ainda inferior ao número marcado pela lei”. Além disso, nenhum dos dois concelhos tinha “população, riqueza e pessoal habilitado para serem conservados”. O chefe do distrito ainda admitia que a ilha do Corvo pudesse alegar, em abono da manutenção do seu concelho, “a separação em que se acha da ilha das Flores e o tempestuoso canal que as divide”. Logo, porém, acrescentava ser completamente impossível a conservação do concelho “pois que apenas tem 195 fogos e 881 almas e lhe faltam todos os elementos indispensáveis” à constituição do mesmo.

Mesmo o novo concelho de Santa Cruz não atingia ainda o número de fogos “que a lei marca, mas não pode deixar de ser conservado por esta forma, porque não é possível a sua anexação a qualquer outro pois que tanto a ilha das Flores como a do Corvo se acham separadas desta do Faial, que é a mais próxima, por um canal de 200 quilómetros”[2].

Silveira Macedo, que viveu estes acontecimentos, assinala “o grande desgosto” que percorreu todo o Reino “por causa da nova divisão territorial e do imposto de consumo” e a “indisposição geral do povo contra o ministério” que “por decreto de 10 de Dezembro aprovou a circunscrição administrativa de concelhos e paróquias civis”[3]. Foi, portanto, no final de um ano extremamente conturbado que o Governo, ao determinar aquela reforma administrativa, “suprimia quatro distritos e 178 concelhos” e desafiava de forma inábil e prepotente “o bairrismo das populações despromovidas”. A oposição popular a esta lei e à do imposto de consumo foi de tal amplitude que a partir do primeiro de Janeiro de 1868 a situação tornou-se explosiva e o ministério, sabendo que não podia reprimir a “Janeirinha”, a não ser com “grande derramamento de sangue”[4], escolheu o caminho da demissão.

Sucedeu-lhe um governo chefiado pelo Conde de Ávila que, numa tentativa de aliviar a pressão popular, revogou a 15 de Janeiro as polémicas leis de imposto de consumo e a divisão administrativa de Martens Ferrão. que, na prática anulava a malquista divisão territorial. Afinal, tudo voltava a ser como dantes!

 


[1] Sardica, José Miguel, Duque de Ávila e Bolama – Biografia, p. 430

[2] AGCH, Livro n.º 104, fls. 289v-294v.

[3] Macedo. A.L. Silveira, História das Quatro Ilhas, vol. II, pp. 333-335

[4] Bonifácio, Maria de Fátima, A Monarquia Constitucional 1807-1910, pp. 86-87

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