Otília Frayão ou a aventura de uma passageira clandestina

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Não é impunemente que se nasce numa lha onde a terra é pouca, o mar é vasto e o sonho é enorme.
Nos inícios de Janeiro do ano de 1951 a faialense Otília Frayão tinha 23 anos de idade e era bonita, inteligente e culta. Escrevia poemas que exprimiam sonho de viagem, desejo de aventura, aspiração de fuga. Num deles, intitulado “Raízes, assim desabafava: “Oh! este desejo de partir/ e não voltar./ Este receio de ficar/ por não poder partir./ Esta brusca saudade/ daquilo que existe lá longe/ no meio, princípio e fim/ dessas águas de sombra…/ Este querer doloroso…/ que salta, geme e se espalha/ por coisas nunca vividas/ que grita enlouquecido/ a dor de não poder entrar/ no porto que não quero ver./ Luz que não quero acender/ e que em vão procuro apagar”.
Um dia, fugindo a um ambiente familiar sufocante, e insatisfeita com a vida cinzenta e opressiva da ilha, dirigiu-se ao cais e meteu-se, ocultamente, dentro do veleiro “Temptress”, construído em madeira e aparelhado em yawl, que, três meses antes, aportara à Horta para reparações resultantes de vários temporais que o açoitaram durante a viagem desde New York, de onde aparelhara a 24 de Agosto de 1950. A bordo, o navegador solitário Edward Allcard, arquitecto naval inglês, preparava-se para zarpar. No ano anterior tinha velejado em solitário de Gibraltar até New York, sem escalas e em 80 dias. A bordo levava mantimentos para duas semanas, tempo estimado pelo britânico para uma viagem até Gibraltar, com possíveis escalas em São Miguel e Madeira. Iniciava, deste modo, a última tirada da sua travessia do Atlântico em solitário.
O que se segue (e que, em 1986, já me havia sido contado pelo saudoso João Carlos Fraga) vem minuciosamente (d)escrito num livro que só agora me chegou às mãos e que de há muito ansiava ler: Temptress Returns (Putnam, London, 1952), da autoria do próprio Edward Allcard.
Retomemos a narrativa da dita viagem.
Após uma noite fria com vento soprando de NW e passada enregelado ao leme, Allcard deparou-se com uma jovem mulher que assomou à escotilha, “com lágrimas nos olhos e ar muito assustado como que apanhada numa armadilha e sem esperança. Tinha cabelos negros batidos pelo vento, um rosto belo, olhos grandes e castanhos, lábios carnudos, pequeno nariz e queixo redondo”. Era Otília Frayão que, 24 horas antes, embarcara clandestinamente no “Temptress”, iniciando assim a viagem que iria modificar a sua vida.
A intromissão da faialense no projeto de Allcard (atravessar o Atlântico em solitário nos dois sentidos) levou-o a alterar a rota para sul. Ainda tentou dissuadir Otília de continuar a viagem e deixá-la em São Miguel, de onde poderia regressar ao Faial. Mas era “tremenda” a decisão dela em deixar as ilhas para trás. Conhecendo a mentalidade faialense, “avaliadas as consequências daquele imprevisto e os efeitos negativos de um desembarque num porto português”, ficou então decidido aceder ao pedido de Otília e transportá-la até Inglaterra, para onde manifestamente queria ir.
De imediato, e de forma voluntária, Otília começou a aprendizagem que fez dela uma inesperada navegadora. Para surpresa do skipper, embora um pouco enjoada e apreensiva, a corajosa faialense passou para o leme e, segundo Allcard, “corria-lhe nas veias sangue dos antigos navegadores portugueses”.
A meados de Janeiro de 1951, o “Temptress” é apanhado por um violento temporal. Durante seis dias a pequena embarcação é fustigada por mar alteroso e vento forte. A rota teve que ser alterada e Casablanca passou a ser a alternativa mais lógica a Gibraltar. Otília tinha adquirido o estatuto de marinheira, cozinhando e registando, no seu diário de bordo, as incidências da viagem. Finalmente, após 24 dias de mar, o “Temptress” fundeava em Casablanca, no dia 1 de fevereiro de 1951.
Durante alguns dias Otília descansou, visitou livrarias e tirou partido das delícias daquela cidade cosmopolita e do calor do sol africano. A notícia da sua grande aventura espalhara-se por todo o mundo e um magote de jornalistas e fotógrafos abeiraram-se, curiosos, da açoriana que, tendo aprendido a lidar com o Oceano Atlântico no Inverno, enfrentava agora a ferocidade dos media.
A jovem aventureira começou a receber correspondência proveniente das mais diversas latitudes, até que um dia deparou com o telegrama de uma senhora de Londres, oferecendo-lhe a passagem de avião e alojamento por um ano. Aceitou de imediato e rumou a Inglaterra. Aqui termina o relato de Temptress Returns e o convívio entre Allcard e Otília.
Meses depois, com a venda da história da sua viagem a um semanário britânico, Otília resolveu os seus compromissos financeiros e passou a ser uma mulher independente, traçando o rumo da sua própria vida. Acabaria por casar com um inglês de ascendência nobre e hoje, com 91 anos de idade, vive em Berdun, Espanha. Nunca deixou de escrever poesia, versejando também em inglês e castelhano. Pedro da Silveira e Ruy Galvão de Carvalho antologiaram alguns dos seus poemas, de nítida inspiração simbolista.
A épica aventura da faialense seria amplamente noticiada em jornais e revistas de todos os quadrantes e, mais tarde, lembrada por conhecidas personalidades do mundo náutico: Ben Carlin, Olivier Stern-Veryn, Tony Vasey, Tom Cunliffe… A história chegou mesmo ao conhecimento do escritor galego Camilo Joé Cela que, em jeito de ironia, escreveria uma crónica intitulada “Eduardo Allcard e señorita Otília – el Robinson y su Beatrice”. João Carlos Fraga, Irene de Amaral e o autor destas linhas (que, baseado na história de Otília, escreveu há mais de 30 anos um conto intitulado “Grimaneza, ou um barco chamado desejo”, posteriormente também transformado em peça de teatro) deram conta desta mulher para quem o mar se abriu como um caminho para a Liberdade e para o Mundo, já que a errância sempre fora a sua maneira de perseguir a Felicidade e o Sonho.

 

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DR

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