“Por vezes os carteiros são a única visita que as pessoas mais idosas têm durante o dia”
Silvia Faria Moitoso Medeiros nasceu na Praia do Norte e é carteira há 24 anos.
Nunca pensou que um dia viria a distribuir correspondência. A oportunidade surgiu por sugestão de um ex-colega, carteiro na freguesia do Capelo, que sabia que Silvia “era desenrascada” e apresentava o perfil necessário para ser uma boa profissional.
Atraída pela remuneração e estabilidade profissional, Silvia resolveu agarrar a oportunidade.
Ao Tribuna da Ilhas, confessa que, no início, derramou muitas lágrimas e pensou muitas vezes em desistir, mas o apoio dos seus colegas motivou-a a continuar.
A carteira admite que esta “é uma profissão muito exigente e difícil”, mas ao mesmo tempo “muito gratificante”. A profissional sente-se “acarinhada e valorizada” pelas pessoas quando passa na rua.
“Ser carteira faz-me feliz. Gosto muito daquilo que faço. Gosto dos meus colegas e da equipa que temos”. É assim que a Silvia define a sua relação com o trabalho.
Em tempos não muito distantes, quando não imperavam as novas tecnologias, os carteiros eram uma figura importante na sociedade. Eram eles que traziam notícias de familiares e amigos que se encontravam distantes.
Embora a sua importância ainda se mantenha, atualmente a realidade destes profissionais é completamente diferente. As cartas de amor foram substituídas por contas para pagar, vales de reforma, publicidade e muitas encomendas.
Sílvia Medeiros conhece bem esta realidade. Carteira nos CTT do Faial, refere que, quando começou a trabalhar, há 24 anos, havia muito mais correspondência. “O fluxo das cartas diminuiu muito, ao mesmo tempo que aumentou o número de encomendas o que permitiu manter o serviço sempre equilibrado”, afirma.
Apesar de ter aumentado o “volume da correspondência” e o trabalho se ter tornado “um pouco mais pesado”, a carteira considera que agora é mais “fácil”. Quando entrou ao serviço já usavam veículos motorizados, mas lembra-se bem de ainda usar malas de cabedal às costas. “Era muito difícil, muito peso. Agora usamos os carrinhos, o que nos facilita a distribuição”, refere.
Uma vocação inesperada
Ao Tribuna das Ilhas, a profissional conta que ser carteira não foi um sonho de infância, nem fazia parte dos seus planos. A oportunidade surgiu por acaso.
Tinha pouco mais 18 anos quando um ex-colega lhe disse que os CTT estavam a contratar carteiros e que esta podia ser uma boa profissão.
“O Sr. Alfredo Faria era carteiro no Capelo. Ele conhecia-me, sabia que eu ia para as vacas e andava de mota, que era desenrascada, e falou comigo. Eu nunca tinha pensado nisso, mas aceitei o desafio”, conta.
“Já tinha trabalhado noutros locais, não estava a trabalhar na altura, mas ia voltar a ter trabalho”, explica. Atraída pela remuneração e movida pela curiosidade, entrou para a empresa em 1999. Apesar de ter sido “bem aceite” pelos colegas e pela população, no início as coisas não foram fáceis. “Nós pensamos que trabalhar nos correios é fácil, mas não é. É uma profissão muito exigente; muito difícil”. Confessa que derramou “muitas lágrimas” e até pensou em desistir, mas os colegas não deixaram. “Os meus colegas sempre me apoiaram e incentivaram a continuar. Foi graças a eles que ainda hoje lá trabalho”, reconhece.
A este respeito, refere que “ali trabalha-se em igualdade de género, não há qualquer tipo de discriminação, não há mulheres e homens. Somos todos iguais”.
Ao ar livre
Sílvia tem 42 anos, duas filhas e quando está em casa gosta de estar ocupada. Para além das tarefas domésticas habituais, gosta de estar ao ar livre, de ir para a terra trabalhar. Ali, diz, relaxa e alivia o stress. O trabalho no exterior é, precisamente, um dos fatores que mais a atrai na profissão, assim como a possibilidade de andar de mota. “Sinto-me livre. Às vezes quando estou a fazer a distribuição e vou de mota dou por mim a cantarolar”, confessa, soltando uma gargalhada.
A carteira orgulha-se da sua profissão, sobretudo quando sente que a sua presença tem algum impacto na vida das pessoas, principalmente das mais idosas e isoladas. Por vezes chega a “prejudicar a distribuição” para lhes dar alguma atenção ou “simplesmente para os ouvir, porque eles precisam”, frisa. Sílvia tem consciência de que, muitas vezes, é a única visita que estas pessoas recebem durante o dia e ao longo da semana. “Há mesmo alguns que nos esperam e gostam de falar da sua vida, desabafar. Gosto sempre de ter um tempinho para eles”, sustenta.
Silvia considera-se uma pessoa “sempre bem-disposta” e sente-se satisfeita quando é bem “recebida e acarinhada” na rua. “Quando passo as pessoas sorriem, falam, dão bom dia ou boa tarde…”, destaca.
Pela negativa, aponta “o vento e a chuva no inverno” e “o calor e a humidade no verão” como os principais inimigos da profissão.
Outra grande dificuldade com que se depara no seu dia a dia prende-se com os recetáculos postais no lado de dentro dos portões, muitas vezes guardados por cães considerados como os melhores amigos do homem, mas vistos por Sílvia como “o pior inimigo” do carteiro. “Não sei porquê, sempre que nos vêm gostam de nos dar uma corrida”, diz, a rir.
Um rol de histórias
Em mais de duas décadas de distribuição, são muitas as histórias para contar, na sua maioria alegres, garante a carteira. No entanto, aquilo que mais a marcou foi mesmo o início da sua carreira, quando foi colocada na freguesia de Castelo Branco.
“Quando comecei a trabalhar, após o sismo de 98, fui para Castelo Branco. Trabalhei na freguesia num período de cinco a seis anos. Encontrei muitas famílias que tinham ficado com as suas casas desmoronadas”, recorda. A profissão obrigou-a a conhecer as pessoas pelo nome, e acabou por criar com elas uma “relação muito próxima”. “Isso marcou-me muito. Em Castelo Branco, e apesar de muitos já terem falecido, sinto sempre um carinho especial”. “Ainda hoje, quando venho com as minhas miúdas para a escola, pelo caminho digo-lhes muitas vezes ‘aqui morava tal senhora que me chegou a fazer isto’. Há sempre uma história relacionada com alguma pessoa”, conta.
Rua acima, rua abaixo, os carteiros nunca param, nem mesmo durante a pandemia. Ao contrário do que aconteceu com outras profissões, os carteiros nunca foram reconhecidos ou agraciados publicamente pelo seu trabalho nessa época. Embora reconheça esta situação, Sílvia admite que não se sentiu incomodada. “Na verdade, não me sinto muito afetada por isso. No meu dia a dia sou reconhecida e valorizada pelas pessoas”.
Em relação ao futuro desta profissão e ao facto de existirem várias empresas no mercado a fazer entregas e distribuição, a carteira reconhece que os tempos são de incerteza: “há várias empresas a fazer este serviço, e o fluxo das cartas a diminuir preocupa-nos um pouco. A empresa também tem vindo a reduzir o pessoal. Os que saem já não são substituídos”, lamenta.
Apesar desta realidade, Silvia confirma que esta é “uma profissão que vale a pena”. “É um trabalho árduo, não é fácil, mas é muito gratificante. Ser carteira faz-me muito feliz. Gosto muito daquilo que faço. Gosto dos meus colegas e da equipa que temos. Somos todos amigos”, refere.