Retalhos da nossa história – CLIV – Furtados, uma família de artistas (6)

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Dotada de múltiplos talentos, a poetisa e contista D. Silvina Furtado de Sousa destacou-se também na música, na pintura e no teatro, sendo ainda professora, empresária e a primeira mulher faialense a trabalhar numa instituição de crédito. 

Tendo regressado à Horta no ano de 1893 – logo após a repentina morte de seu pai, Cândido Maria de Sousa, com quem vivia em Lisboa – cedo começou a trabalhar. É o que se lê nas breves notas biográficas insertas num ofício de 18 de Janeiro de 1965 dirigido pelo governador do distrito, Dr. António de Freitas Pimentel, ao Ministro da Educação Nacional propondo que D. Silvina Furtado de Sousa fosse distinguida com uma condecoração pelos seus quase 70 anos de docência. Lá se diz que ela, sendo “diplomada em dactilografia e cursos de pintura e piano”, era “professora de letras, música e piano desde os 18 anos” e “de pintura desde os 23 anos”. 

Numa iniciativa arrojada, criou e manteve na cidade da Horta o “Colégio Insulano” que começou a funcionar em Dezembro de 1917 e onde se leccionava: Português, Francês, Inglês, Música – Piano, Canto, Harmónio – Pintura (arte aplicada), Lavores de todos os géneros, e ainda o 1.º e 2.º grau de instrução primária. O “Colégio Insulano”, que oferecia “a vantagem de reunir num só instituto de ensino um núcleo de disciplinas que constitui a educação moderna” e que ministrava “ensino teórico e prático”, tinha como professoras D. Maria Emília S. de Saldanha e Albuquerque, D. Berta Furtado da Silveira, D. Silvina Furtado de Sousa e D. Lídia Correia de Bettencourt Furtado . 

A fundação daquele colégio – num período conturbado da vida mundial pois decorria a  Grande Guerra de 1914-1918 – foi, possivelmente, o ponto alto do magistério literário e artístico de D. Silvina de Sousa, sempre coadjuvada por sua prima e íntima amiga D. Lídia Furtado. A prová-lo estão as audições musicais todos os anos realizadas, as quais eram publicitadas por detalhados programas impressos em tipografia local e de que tenho exemplares que abrangem o período que vai de 1908 a 1916. Por eles se nota que naquelas audições, além da participação dos alunos de piano e canto, actuava sempre uma orquestra, dirigida quer por D. Silvina Furtado quer pelo maestro Francisco Xavier Symaria e que, invariavelmente, executava peças de consagrados compositores, como Donizetti, H. Hofman, Chopin, A. Dvorak, Verdi, Beethoven ou Bach. Além do maestro Symaria e de D. Silvina Furtado, fizeram parte da orquestra alguns dos melhores músicos faialenses, designadamente Henrique de Sousa Furtado (seu tio), Heitor de Sousa Pimentel (seu irmão), Urbano Rodrigues Guiomar, Guilherme Mesquita, Alfredo Soares, Manuel Dutra, Manuel Jacinto Norte, José Goulart Cardoso, Manuel Ventura, Luís Proença de Pina Coelho e Tomás Francisco de Medeiros. 

Uma ou outra vez, estas audições transformavam-se em saraus músico-dramáticos, como foi o caso do que se realizou no Teatro Faialense em 17 de Março de 1915. Promovido “pelas professoras de canto e piano D. Lídia Correia de Bettencourt Furtado e D. Silvina Furtado” constou da “comédia Sorte dos Maridos, tradução de Humberto Correia, desempenhada por D. Silvina, Florêncio Terra Jr., Humberto Correia, António Faria e Domingos Lemos” e da comédia Uma Chávena de Chá, original do actor José Carlos dos Santos e interpretada por D. Lídia Furtado, Florêncio terra Jr., Francisco Augusto da Silveira e António Faria. A parte musical foi assim preenchida: concertante de zarzuela El Milagro de la Virgen, coro e orquestra sob regência de D. Silvina Furtado; dueto de Laura e Gioconda, por D. Lídia Furtado e D. Clotilde Tânger, com acompanhamento de orquestra; Adagio Religioso, terceto para piano, harmónio e violino a cargo de D. Silvina Furtado, Henrique Furtado e maestro Symaria; a orquestra executou ainda as aberturas Semiranis, Si j´´etais roi e a ouverture Morning, Noon and Night in Vienna, sob a regência de D. Silvina Furtado. 

Pode presumir-se que este espectátulo realizado no Teatro Faialense se destinava à angariação de receitas que ajudassem a custear a construção do “Salão Teatro Eden” , outra arrojada iniciativa de D. Silvina e D. Lídia Furtado e que abriria as portas ao público a 25 de Novembro daquele ano de 1915. Possuo exemplar do programa daquela inauguração que consistiu na exibição de oito “filmes com as últimas novidades”, abrangendo os géneros “natural”, “drama” e “cómico”. Porque era a época do cinema mudo, o programa salientava o “selecionado reportório pelo sexteto” dirigido pelo maestro Symaria, pedia ao público “o maior silêncio” e divulgava os preços da sessão: “balcão 200 reis, superior 150 reis e geral 75 reis”. Outras estreias cinematográficas eram já anunciadas e estas, alternando com os espectáculos de teatro, deram vida ao “Salão Eden”. Foi nele que decorreu, “pelas 8 da noite em ponto”, a 24 de Janeiro de 1917 – no mesmo ano em que foi fundado o “Colégio Insulano” – um sarau músico-dramático “promovido pelas professoras de canto e piano D. Lídia C. B. Furtado e D. Silvina Furtado de Sousa” preenchido por três peças teatrais: Os Quatro Caminhos de Eduardo Schwalbach, Rosas de Todo o Ano de Júlio Dantas e A Burguesa de Gervásio Lobato e ainda por números de canto e piano de obras de Liszt, Donizetti e Verdi. As dificuldades provocadas pela conflagração mundial e as originadas pela constante instabilidade política e económica que caracterizaram a primeira República, criaram, naturalmente, grandes entraves ao espírito empreendedor de D. Silvina e D. Lídia Furtado, razão que explica ter a primeira sido forçada, em 1924, a recorrer à venda de pianos e outros instrumentos musicais, “pelos preços mais razoáveis para o que [tinha] contrato especial com as acreditadas casas Neuparth e Valentim de Carvalho” .

Acrescente-se que os abalos sísmicos de 1926, que culminaram no destruidor terramoto de 31 de Agosto, provocaram grandes problemas no rendimento das famílias, em especial naquelas que, na devastada cidade da Horta, recorriam aos serviços do “Colégio Insulano” e do “Salão Eden”, que apesar de não haverem fechado, terão passado por sérias dificuldades. Foi, certamente por isto, que D. Silvina Furtado de Sousa se viu forçada, ainda em 1926, a ingressar no Banco Fayal, o que fez dela a primeira mulher a exercer funções numa instituição de crédito . 

Não diminuiu, porém, a sua devotada dedicação à vida artística e à docência, que só conheceu prolongada interrupção em 1938 devido a pertinaz doença que a reteve no leito por largos meses e que, curiosamente, fez germinar no espírito dos que haviam sido seus alunos e discípulos a ideia de uma homenagem pública – um espectáculo de arte como preito ao seu talento e “como regozijo pelas suas melhoras” . Acolhida a ideia, a festa de homenagem a D. Silvina Furtado realizou-se a 1 de Março de 1940 – dia em que passava mais um aniversário sobre o nascimento de Frederic Chopin, o seu compositor preferido. Foi, conforme relata a imprensa da época, “uma linda festa” que decorreu no salão nobre da sociedade Amor da Pátria e que foi presidida pelo governador civil Moreira de Carvalho. Uma orquestra, sob a hábil direcção de Ricardo Ventura, executou a “Polonaise Militaire” de Chopin, o Dr. Alberto Campos de Medeiros, presidente daquele clube e médico pessoal da homenageada, bem como Francisco Canto e Castro, o principal obreiro daquela festa, proferiram sinceras palavras de apreço e de gratidão para com D. Silvina Furtado, seguindo-se uma conferência sobre a vida e obra de Chopin, a cargo do Dr. Virgílio Pimentel, secretário-geral do Governo Civil; houve ainda recitação de poemas, sendo a segunda e terceira partes da sessão preenchidas com música de Chopin, com destaque para valsas, nocturnos e fantasias, superiormente executadas por Humberto Leandro de Melo Pereira, D. Edila Brum Dutra de Andrade, D. Branca Fonseca Barata, D. Maria Leonilde Naia, D. Elisa Baptista Lúcio da Silva Dutra, D. Josefina Amarante Freitas do Canto e Castro, D. Maria Amélia Roches Lima e D. Rosa Etelvina Goulart. A fechar a “deliciosa festa”, a própria homenageada tocou admiravelmente o Prelúdio 15 Op 28 do eminente compositor .

Foram também alguns destes alunos e amigos que deram apreciado contributo a uma outra grande homenagem que lhe foi tributada em 28 de Agosto de 1965 com a entrega da Comenda da Ordem da Instrução Pública concedida pelo Presidente da República. A cerimónia, que envolveu o governador Freitas Pimentel, outras autoridades e muitos amigos de D. Silvina Furtado de Sousa, decorreu nas duas ilhas-irmãs – o Faial onde nasceu e o Pico que a seduziu e onde residia – tendo começado na cidade da Horta quando, junto da casa da ilustre professora à rua Conselheiro Medeiros se “reuniram muitos dos seus antigos alunos e ali pelo presidente do Município foi descerrada uma lápide com estes dizeres: “Silvina Furtado de Sousa (Iracema). Aqui viveu e ensinou”. Pelas 15,30 horas, viajando em lancha especial chegou à vila da Madalena o governador do distrito que, com demais autoridades distritais e concelhias e amigos da homenageada participou na Eucaristia de acção de graças e, depois, no salão nobre da Câmara Municipal, na cerimónia de consagração da homenageada, “onde se viveram momentos que raramente se repetem”. Deles – e em síntese obrigatória pela falta de espaço – apenas se assinala o longo e bem elaborado discurso de chefe de secretaria da Junta Geral do Distrito, João Manuel da Silva Menezes, “antigo aluno que teve o mérito e a honra de ser o organizador” daquele “solene cortejo de gratidão”, que pormenorizou “ a actividade artística, literária e pedagógica” da homenageada, de quem o professor Fernando Melo declamou alguns sonetos do livro Saudade e duas magníficas Aguarelas publicadas em “Bom Combate”. Depois, lido o documento de concessão da distinção, o governador Freitas Pimentel “impôs as insígnias, abraçando a veneranda e distinta professora de Ensino Particular que durante 70 anos exerceu com inexcedível e competência o Magistério”, momento que foi sublinhado “com uma entusiástica e triunfal salva de palmas que pareciam não findar”. Em seguida o presidente da direcção do Núcleo Cultural da Horta proferiu uma breve saudação e entregou à homenageada o diploma de sócia honorária daquela instituição. Duas antigas alunas – D. Berta da Silveira Correia de Melo e D. Mary de Roches de Lima, “em nome de todos os alunos entregaram à sua querida professora um estojo de veludo azul, forrado de seda branca, contendo uma rica batuta, como símbolo de ‘Mestria’, como então acentuou João Menezes”. O chefe do distrito, em breve improviso, pôs em destaque as qualidades pedagógicas e artísticas de D. Silvina Furtado, congratulou-se com a distinção que lhe era conferida pelo Presidente da República e manifestou o “prazer que sentia em cumprir o mandato de que fora incumbido, “impondo-lhe a Comenda da Ordem da Instrução Pública”. A fala agradecida da homenageada foi, segundo ela, a sua “última lição – Lição do tempo, recitando, com brilho e de memória um interessante poema de Guerra Junqueiro que define a saudade” e acentuando que jamais esqueceria “estas horas felizes que trouxeram aos meus olhos e ao meu coração a luminosa presença dos meus Amigos e a certeza – também luminosa – do apreço e dedicação dos meus alunos pela sua velha professora, na recordação desse passado feliz” .

D. Silvina Furtado de Sousa, verdadeira “alma de artista para quem a Música foi sempre o mais luminoso de todos os sonhos” residiu, ao findar da vida, no Lar da Santa Casa da Misericórdia, na cidade da Horta. Lá faleceu, aos 96 anos, em 6 de Setembro de 1973 e, recentemente, a edilidade faialense, deliberou perpetuar o seu nome na toponímia da sua terra natal, dando o seu nome à antiga rampa de São Francisco que dá acesso àquela instituição de benemerência.

(continua)

 

 

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