Santa Maria, a encantada ilha

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Dou-me lindamente bem com o remanso destes dias passados na ilha de Santa Maria, a mais meridional e ao mesmo tempo a mais oriental dos Açores. E não há dinheiro que pague esta sensação de sossego e de apaziguamento. A última vez que por cá andei foi para assistir, na Praia Formosa, ao incontornável festival musical “Maré de Agosto”, já lá vão uns bons anos…

Estou alojado numa casa da Vila do Porto, sede de concelho, o primeiro povoado urbano destas açorianas ilhas. A sua estrutura linear simples, com uma rua principal que corre na perpendicular do mar (“um cordão de casario na eminência do porto”, lhe chamou Vitorino Nemésio) confirma a estrutura urbana dos burgos quatrocentistas.

Deambulo pelas ruas da Vila e dou comigo a assobiar uma cantiga do saudoso Mário Mariante. Desço ao forte de São Brás para lembrar a aventura de chegadas e partidas em Dias de São Vapor… Acode-me à memória que esta é “a ilha que cheira bem”, segundo li n´As Ilhas Desconhecidas, de Raul Brandão. Sim, posso comprovar: esta é a ilha dos aromas da terra, dos cheiros fortes e intensos.

 Passo pelo Clube Asas do Atlântico e pelo Atlântida Cine, onde há duas décadas fiz teatro. Reencontro um velho amigo que me sorri quando lhe chamo “cagarro”, o simpático palmípede que deu alcunha aos marienses.

Santa Maria partilha com a Graciosa, as Flores e o Corvo a triste circunstância de ser desconhecida por parte da maioria dos açorianos. E no entanto, “a ilha de Gonçalo Velho”, a mais antiga do arquipélago e a primeira a ser avistada (em 1427, numa altura em que os Açores eram já uma certeza cartográfica), é extraordinariamente bela e cheia de contrastes.                 

Dos Anjos à Maia, a ilha apresenta uma paisagem muito variada, dividindo-se em duas partes distintas: uma zona bastante acidentada a noroeste – freguesias de Santa Bárbara e Santo Espírito – e outra mais plana – Vila do Porto, São Pedro e Almagreira.

Uma natureza insólita, com ravinas abruptas e vales profundos, Santa Maria são duas numa só ilha em apenas 97 km2 de superfície: um dos lados apresenta-se montanhoso e revestido de maciça vegetação; o outro é absolutamente árido, conhecido como “deserto vermelho”. No Barreiro da Faneca as terras são materiais de argila vermelha e cheiram permanentemente a barro.

Mas para mim Santa Maria continua a ser a ilha-aeroporto, eu que ainda sou do tempo das escalas ali verificadas. O aeroporto, construído a mando dos Estados Unidos da América entre 1944 e 1946, haveria de transformar a ilha numa metrópole da aviação do Atlântico Norte. “Little America” lhe chamaram os americanos. Trata-se do aeroporto com a mais extensa pista do arquipélago (3.048 metros de comprimento) e que à sua volta gerou, durante décadas, muita dinâmica comercial e animação social. Por aqui passaram gentes que falavam todas as línguas do mundo viajando nos elegantes Super Constellation da TWA e nos sólidos DCC da Pan American. Aqui aterraram aviões de todas as companhias mundiais: Varig, Iberia, Air France, Avianca, até o Concorde aqui fez escalas técnicas… Trabalhando por turnos, os funcionários e operários do aeroporto deram vida a Santa Maria, de dia e de noite. Infelizmente com a desativação, em 1978, do aeroporto internacional, a ilha voltou a conhecer dias de rotina, de marasmo e isolamento…

Em compensação está aqui instalado o Centro de Controlo Aéreo do Atlântico, que controla o espaço aéreo de todo o Atlântico Norte, justificando a importância estratégica de Santa Maria, escala técnica quase obrigatória dos voos transatlânticos. E, desde 2008, existe uma estação terrestre de rastreio de satélites da Agência Espacial Europeia (ESA).

Das várias voltas que vou dando à ilha, não me canso de tirar fotografias às casas marienses (cuja cor branca se deve à cal da própria ilha) que denotam claras influências da arquitetura tradicional algarvia e alentejana – regiões de origem dos primeiros povoadores. Contemplo as janelas com barras que, de freguesia para freguesia e de lugar para lugar, variam de cor: azul, verde, vermelha e amarela. E belo, muito belo é o perfil das chaminés de características algarvias. (Os marienses têm sangue mourisco a correr-lhes nas veias. E digam-me lá se não são mouriscas as toadas dos foliões desta ilha?).

Após uma visita ao muito bem apetrechado Museu Etnográfico, situado em Santo Espírito, dou comigo a fotografar os frontispícios das igrejas. Gosto particularmente da igreja de Santo Espírito, um dos mais belos templos barrocos dos Açores, com fachada construída com pedras vulcânicas no século XVI e ampliada no século XVIII. E os exteriores e interiores da Matriz de Nossa Senhora da Assunção e da igreja de Nossa Senhora da Vitória são também de uma grande riqueza patrimonial.

No lugar dos Anjos ergue-se a ermida de Nossa Senhora dos Anjos, na qual Cristóvão Colombo terá mandado celebrar uma Missa de Ação de Graças no seu regresso da América, em 1493. Diz ainda a tradição oral que o navegador terá sido tomado por pirata, tendo sido preso pelo governador de Santa Maria – peripécia que… se non è vero è ben trovato…

Visito o Pico Alto (a cerca de 590 metros acima do nível do mar), um vulcão com cerca de 3 milhões de anos. Daqui observamos toda a ilha e, em dias de bom tempo, avista-se São Miguel. Antes já havia visitado o Pico do Facho, onde outrora se faziam sinais de lume em alerta pelo avistamento de piratas e corsários que vinham do mar para saquear a ilha, açoitar as suas gentes, profanar as igrejas e levar cativos. (Na linguagem popular mariense ficou a interjeição de espanto “Bei!”, que sendo genericamente título de chefe na Tunísia, em Santa Maria e também na Graciosa era associado ao nome de um terrível e temível pirata da Mafoma).

Exuberante e extraordinária é a Baía de São Lourenço, com a sua praia de areias brancas, e a imponência das suas vinhas dispostas em anfiteatro na encosta, protegidas por currais de pedra basáltica. Nesta estância balnear quisera eu ter uma casa… Não muito longe dali fica a Maia, reserva natural e também local de veraneio, do encanto e do espanto.

Sim, Santa Maria é um deslumbramento. Por exemplo: não consigo passar por Valverde ou Santa Bárbara sem pensar que estou na presença de presépios em tamanho real…

Olho tudo isto com respeito e fascinação. E é do farol da Ponta do Castelo que desvendo a beleza e a impressão de toda esta grandeza telúrica.

                             

 

                              Victor Rui Dores

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