SEM BOTAR PITAFE

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Era assim que Dona Luísa falava quando se referia à filha. Mariana, seu nome, era uma menina linda. Prestes a fazer catorze anos, era a aluna mais velha que eu tinha e dava-me muito trabalho. Eu a recebi naquele ano, na quarta classe, repetente, repetente e repetente. Preguiçosa, desatenta, faltava às aulas quando lhe apetecia e voltava com desculpas esfarrapadas, palavras soezes, ao abrigo da protecção da poderosa mãe.
Mariana poderia ter muitos defeitos, mas no que respeita a meiguice, carinho e amizade, não era de botar pitafe. Não era criança e não era adolescente. Seria, quando muito uma aborrescente. Tinha o condão de nos irritar e quando atingia o limite lá vinha ela pedindo desculpas. E virava anjo. Acho que suas asas estavam mesmo lá até que sumiam de repente enquanto as colegas a esculhambavam. Eu não vou pensar mais na Mariana!
Um dia faltou. E outro, outro e outro. Veio o pai com lágrimas, contando que a filha tinha uma doença para durar. Fui ao hospital, abracei-a, ela abriu um sorriso de lágrimas feito prometendo nunca mais faltar à escola.
E fui visitando-a. E a doença, como dizia o pai, durando. Durando muito. Certo dia o médico confidenciou-me aquilo que eu não queria ouvir. Nesse dia olhei-a e senti custo em disfarçar a dor que possuía. Aquela menina linda, linda de não se bota pitafe, ia- se transformando.
E naquela escola quanto mais eu não queria eu a via naquela turma. Ora fingindo estar com atenção folheando a listinha dos namorados, ora carregando um braçado de loendros jogando- os sobre a secretária: “ a senhora merece”.
Naquele dia ao entrar naquele quarto fiquei petrificada. Não estava preparada. A minha Mariana não era aquela. Ela estendeu-me a custo os braços e dei por mim deitada a seu lado. E foi esse o dia das mentiras! O que eu menti, meu Deus! Mas ela sorria, sorriso de cadáver. E saí magicando. Eu não vou pensar mais nela!
E foram meses de tormento, más notícias Aquela menina de não botar pitafe foi infeliz, sofredora, porque a porcaria do pitafe gostou dela e não a largou. E eu numa aflição desconfortável, animando, mentindo, atirando ao ar palavras em que não acreditava e saía prometendo: eu não vou pensar mais nela.
Férias de Natal. Atravessei o Guadiana, apanhei comboio e olhando a planície alentejana senti a Mariana a meu lado abraçando-me, desculpando-se, jogando o último ramo de loendros.
Ela viajou comigo, passou o Natal comigo, esteve naquela consoada onde todos eram felizes menos eu que procurei ocultar o desgosto de estar a perder aquela menina sem pitafe que fugia rumo ao Guadiana para olhar os batelões, os pescadores, o ruído das ondas, o seu pequeno mundo. Daquele seu mundo que a fazia esquecer a oração principal na ânsia das subordinadas. Viveu assim porque entendeu o que poucos entendem – os sonhos são bons quando contrariam a vida.
Na época eu também era menina. Teria sete ou oito anos mais. A desculpa por ter feito tão pouco por ela. Mas atenção, hoje não sou uma pessoa velha com coração de criança. Sou uma criança a quem a porcaria da vida botou pitafe. Não vou pensar mais nela.
Não era isto que eu ia escrever hoje. Fi-lo com intenção de despistar as muitas Marianas que a estúpida da morte tem levado nesta primavera. Sem licença, sem aviso prévio, sem passaporte, sem uma satisfação. Silenciosa, ruidosa. A morte é um nojo. Asa tatalante d´anjo negro. Não vou pensar mais na Mariana porque tenho o coração cheio de dores que esta primavera de mortes descarregou por aí. E é difícil deitar a cabeça na almofada sem carregar rectângulos de madeira descendo, lágrimas traçando sulcos infinitos, choros do reverter ao pó, perfume póstumo de flores, mais uma ferida na colecção de cicatrizes, campos de batalhas onde se cai à toa, a solidão sobre nós, o ser e o não ser numa erosão de toda a matéria, o fim, sempre o fim, só o fim… a porcaria da vida!
Posso não ter acompanhado as pessoas que partiram mas a memória delas e a dor da perda vivem comigo. Resta enviar às famílias sofredoras uma única palavra: FORÇA!

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