As titias

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TI

TI

O pêndulo do relógio de parede marca, no seu compassado “tic-tac”, a monotonia da sala…
Estou na velha casa solarenga que, outrora, pertenceu às minhas tias Alice e Leopoldina – referências envolventes no meu imaginário afectivo.
As minhas tias viviam, solteiríssimas, nesta casa por onde deambulavam, suspensas e remotas. Guardadoras de memórias, afagavam gatinhos, cultivavam ternura e plantas. Desfalecidas no cansaço do ócio, passavam as tardes a costurar e a ler romances de Júlio Dinis, Camilo Castelo Branco, Alexandre Dumas e Max du Veuzit, livros que as transportavam para mundos sonhados, imaginados e pressentidos… À noite rezavam o terço em frente de um oratório…
Foram elas que me ensinaram a ler, a contar e a desenhar e foram elas que contribuíram, decisivamente, para o desenvolvimento da minha líbido… Delas recebi sabedoria, afectos, bolos frescos e inesperados afagos… Chamavam-me Menino Jesus e beijavam-me, com piedosa devoção, os pezinhos e as rosquinhas das coxas do bebé que eu fui. Anos mais tarde, já espigadote, punham elas (com imaginação maliciosa) beijos devotos na minha “bliquinha”…
Eu partilhava com as minhas tias os seus mundos amarelecidos de pétalas e suspiros, de solidão e apelos, de cortinados e pó de arroz. Faziam-me biscoitinhos, trocavam segredinhos brejeiros (ao notarem que a minha voz entretanto engrossara) e obrigavam-me a beber copinhos de anis… Perspicazes, prudentes, conselheirais, zelavam por mim, apaparicavam-me. Meu pai bem que me avisava:
-Eh, rapazinho, deixa lá as saias das tias!
Mas eu era o “ai-jesus” delas. Em relação aos meus irmãos, era eu quem recebia mais chocolates pelo Natal e mais amêndoas pela Páscoa. Como poderia eu resistir à intimidade das tias? Atraía-me o ambiente tépido daquela casa…
As titias sobreviviam de pensões e rendas. Alugavam quartos a professoras do ensino primário, fornecendo-lhes cama e roupa lavada. As professoras tornavam-se primas entre si, sobrinhas entre elas; o jogo cumpria-se até à ambiguidade, até ao fingimento ser real; a vida, os sentimentos abriam-se, as doenças de cada uma passavam-lhes pelas mãos, as dificuldades, os desgostos, as emoções faziam-se comuns.
Ah, as minhas titias Alice e Leopoldina, de peles macias que cheiravam a flores e a sabonete Mikado… Libertárias e desafiadoras, optaram conscientemente pela vida de solteiras. Ficaram para tias, apesar das paixões avassaladoras que ambas, quando jovens, conheceram. Amaram e foram amadas e viveram momentos de suprema felicidade. A tia Alice, com um alferes do exército; a tia Leopoldina, com um caixeiro-viajante…
Quando chegava a Páscoa, as tias faziam questão que eu e o meu irmão fossemos as Marias do Pé da Cruz. Vestiam-me de “Maria” e trajavam o meu irmão José de “Verónica”. A gente finava-se a rir quando se via ao espelho, ante a reprovação benevolente das tias. Sabíamos que o Luciano, o Peixe-Rei e outros cegões da Barra iam fazer troça de nós… Mas as tias preparavam-nos para esses e outros incidentes de somenos importância. E caprichavam, durante dias, na costura das vestimentas, não dando descanso à velha Singer. Ajudavam-nos a aprender a melodia do vos omnes e a decorar o latinório… E ensaiavam toda a movimentação cénica.
Na tarde de mormaço da Sexta-Feira Santa, as titias davam os últimos retoques. O meu irmão José e eu, de azul e roxo vestidos, lá íamos, compenetrados, a fazer o nosso papel, tropeçando, de quando em vez, nas nossas saias compridas, apesar de enroladas no cós. Acompanhados de homens, mulheres e crianças, dispostos em duas alas, caminhávamos em fervorosa prece, num silêncio de passos abafados e tosses secas.
Nos sítios previamente combinados, nós, as “Marias”, fazíamos uma paragem e o meu irmão, subindo para um banquinho, cantava com uma seriedade que me espantava:
O vos omnes, o vos omnes
Qui transistis per viam
Atendite et videte…
E, assim que chegava ao videte, o meu irmão, de véu de baeta roxa caída pela cara abaixo, desenrolava aquele santo sudário quadradinho e o povo ajoelhava-se, com a gravidade que as circunstâncias exigiam. Eu, de olhos semi-cerrados, respondia com um acanhado Domine Salvator noster! E prosseguíamos, em cortejo lento e lúgubre, pelas ruas da vila.
Terminada a procissão, eu corria para casa das tias que me aguardavam com o sorriso de um merecido cartucho de amêndoas…

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