Das viagens não conservo uma noção que exceda um breve sono, sonho, lapso de altura, vertical perfil (Ruy Duarte de Carvalho)

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Ainda nas picadas do sul, depois de termos a barriga repleta retomamos a marcha, mais 65 km até à Taka, o vértice mais distante do Triângulo dos Gambos, pelos caminhos íamos encontrando de vez em quando um Ehumbo (conjunto de de cubatas de adobe com teto de palha rodeadas por um muro de paus) onde vivem as unidades familiares compostas pelo chefe do Ehumbo com as suas mulheres, filhos e também os sobrinhos já que a descendência e a sucessão por estas bandas se faz pela via materna e portanto o sobrinho (filho da irmã) é o herdeiro do tio e não os filhos deste, é uma lógica que explica o dizer da mãe do meu avô que era também do sul:  “os filhos das minhas filhas meus netos são, os filhos dos meus filhos meu netos serão ou não”. Este tipo de descendência garante aos locais que os seus herdeiros têm a sua linhagem, é a garantia da consanguinidade dos herdeiros numa sociedade com hábitos culturais promíscuos no que se refere à sexualidade e um inesperado poder feminino, matrilinear,  que se afirma contra a corrente do machismo generalizado. Outra das presenças constantes nestes caminhos do sul é o gado que parece estar em todo o lado, às vezes sozinho outras acompanhado. A riqueza das gentes do sul está no seu gado, é à volta dele que estas sociedades de pastores se estruturam, é por ele que fazem as transumâncias, é ele que determina o status de cada indivíduo e grande parte das relações que estabelece com os outros. O gado aqui funciona como uma espécie de  matriz que serve de referência para as trocas, as coisas tem valor em função da quantidade de cabeças de gado que representam. Seria apesar de todo redutor considerar somente aspetos da cultura material para analisar estas gentes de tão elevada vivência espiritual e a sua relação com o seu gado por isso não me alongarei dizendo apenas que aqui o gado é muito importante e que o pastor conhece pelo nome cada uma das suas cabeças de gado e para elas vai cantando uma lengalenga em que vai referindo o nome de cada um, as suas características e até traços de caracter.

À medida que nos aproximamos da Taka vamos entrando em território Muakawona um grupo bastante fechado que apresenta aspetos curiosos que os destinguem dos Mongambwe como os cabelos que nas mulheres jovens são trançados em tranças finas e longas de fazer inveja a muito postiço urbano, e nos rapazes solteiros o cabelo é rapado dos lados deixando uma faixa central estilo punk. Os Moakawonas são no mínimo pitorescos aos olhos do visitante externo e a sumptuosidade dos seus adereços presta-se a “photo oportunities” fantásticas, andam sempre com as suas armas, uma catana, um espeto para perfurar e um porrinho. Ao chegar à Taka deparamos com três jovens com os seus punks montados em burros a galope seguindo os nossos carros, uma visão que deixou até os doze do Cunene de olhos arregalados. Meio a gaguejar pedi ao Lito que parasse e de nikon em punho corri ao seu encontro. Eles também devem ter ficado surpreendidos ao ver-me porque imediatamente pararam e cruzaram algumas palavras entre si com ar de espanto. Apesar da surpresa não reagiram mal e aceitaram sem problemas que os fotografasse manifestando grande interesse pela máquina e manifesta euforia quando os pus a espreitar pelo buraquinho da lente enquanto aproximava e afastava o zoom. Comunicámos por gestos e quando regressei ao carro os doze do Cunene estavam pálidos como cal e com sorrisinhos nervosos, pensei que fosse a visão assim meio surrealista de um grupo de punks africanos montados em burros a galope e de um alienígena armado de nikon correndo ao seu encontro mas mais tarde percebi que tinham pensado que seria a morte do artista. Os Muakawonas são guerreiros afamados que desde a mais tenra idade praticam a arte da luta e o manuseio das suas armas, muita gente já ouviu falar de lutas e mutilações terríveis provocadas por elas. Apesar dos mitos estes três jovens eram pacíficos e permaneceram nas imediações do acampamento acompanhando curiosos as minhas movimentações com a nikon, com mais algum tempo de prática diria até que eram capazes de se tornar excelentes modelos fotográficos pois quase que por magia apareciam na linha de fogo da lente cada vez que a apontava para algum lado. 

 A base da Taka consiste numa antiga fazenda (em ruínas) onde fizemos um poço equipado com uma bomba manual, depois de montadas as tendas foi começando a aparecer gente, alguns já conhecidos do pessoal do projeto, fomos buscar lenha e acendeu-se o fogo para a perícia culinária do Sr Amandio e para nós. Depois de comermos cabrito com pirão e bebermos Ngola (quente claro)  as línguas soltaram-se e as conversas em torno da fogueira começaram a ficar animadas. Acirrada pela curiosidade dos meus pares uma velha Muakawona determinou que isso de Muakawona com branco nunca se viu e não há viabilidade em semelhante cruzamento. Contou até que umas jovens Muakawonas que moram mais distante admiraram com a presença na Taka há uns tempos atrás de um homem (o Totinha) que apesar de adulto tinha pele de bebé.   A minha teoria do “todos diferentes todos diferentes” não a demoveu e não tive alternativa senão entrar numa dissertação sobre as semelhanças que existem entre os povos daqui e os de lá na Europa, em como os olhos nem sempre nos ajudam a ver e da necessidade de tocar o coração dos outros. Tudo isto numa comunicação difícil recorrendo à Isabel e ao tio João de Deus, um dos doze do Cunene que se adaptou facilmente ao linguajar dos Muakawonas, para ir traduzindo. A velha deve ter ficado sensibilizada pelas minhas palavras porque ficou conversando comigo até altas horas, ela faz parte de um grupo de mulheres que têm uma lavra comunitária e também fazem panelas de barro, ficou muito interessada na ideia de cozer o barro num forno (as Muakawonas cozem o barro no chão em fogueiras) e apresentou-me um sobrinho em casa de quem se vai fazer a circuncisão em breve mal o soba regresse de uma viagem. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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