Reflexões Crónicas – A preta da Travessa de S. Francisco

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Tem havido ultimamente um aceso debate acerca de vários temas do nosso passado histórico, sobretudo depois de se conhecer a intenção para a criação de um museu em Lisboa dedicado aos Descobrimentos portugueses. Esta questão serviu de mote para um debate muito mais alargado, que invariavelmente nos conduz a questões como a escravatura ou as atrocidades que os portugueses fizeram ao longo dos séculos para aumentar ou manter as suas possessões ultramarinas (e não só). No âmbito internacional, vemos hoje a memória de muitos locais a ser manipulada por questões políticas, ora branqueando e diminuindo acontecimentos, ora evidenciando outros em demasia, consoante interesses instalados. 

Tenho acompanhado estas discussões com uma certa distância, fiando-me que a desgraça só acontece em casa alheia. Até que um dia cheguei ao local onde ia dar uma conferência e descobri que os “donos da casa” tinham decidido não autorizar o evento no local combinado, depois de terem recebido várias manifestações de descontentamen-to de pessoas que acharam que o tema podia “causar escândalo” e por isso não se adequava ao local. No final a história até teve um desfecho feliz, mas deixou-me a reflectir bastante sobre o assunto. Sobretudo por ter pessoas que, ao mesmo tempo que me incentivavam a fazer investigação, me diziam que havia temas que, “sendo do passado”, não se deviam mexer e, no caso de serem investigados, todos os resultados encontrados seriam duvidosos e não deveriam por isso ser divulgados.
Que pudores ou temores teremos entre nós que nos impedem de falar de temas ocorridos há três ou quatro séculos? Que mal poderiam fazer-nos hoje? Será que deve-mos falar dos horrores da escravatura na mesma medida em que elevamos os nossos “heróicos navegadores”? Ou devíamos antes relativizar ambas as coisas?
A escravatura, por exemplo, também existiu entre nós, no Faial e nas outras ilhas. Não se fala do assunto, não creio que por pudor, mas por simples desconhecimento, pois sabe-se muito pouco sobre o assunto. E os escravos que por cá existiram eram poucos e domésticos, acabando muitas vezes por receber a liberdade e por até por ter melhores condições de vida que muitas outras pessoas. Mesmo assim, não podemos relativizar em demasia, nem a um lado nem ao outro. Ainda há uns dias passou-me pelos olhos uma referência do século XIX sobre uma “Maria, mulher preta”, que era dona de uma casa na Travessa de S. Francisco. Apesar da propriedade nos permitir deduzir que era uma mulher livre (inclusive arrendava a casa), continua a ser identificada como “mulher preta”, o que assinala a raridade de alguém assim ter uma propriedade (mesmo mulheres brancas com casas não eram assim tantas), mas também nos informa que as pessoas “pretas” eram raras e, por isso, identificadas como tal.
Será porventura incómodo falarmos de Maria, a “mulher preta” que por 1830 alugava a sua “casa de um alto e uma loja” na Travessa de S. Francisco? Então e dos cerca de 45 escravos (quase todos mulheres) que nesse mesmo período serviam nas casas da freguesia da Matriz? Teremos nós tabus na nossa História ou apenas um manancial de temas ainda por explorar? Será o título deste texto “escandaloso”? 
Fica a reflexão (e aceitam-se opiniões e contributos sobre o tema).

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Em defesa da Língua Portuguesa, o autor deste texto não adopta o “Acordo Ortográfico” de 1990, devido a este ser inconsistente, incoerente e inconstitucional (para além de com-provadamente promover a iliteracia em publicações oficiais e privadas, na imprensa e na população em geral).

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