Retalhos da nossa história – 287 – O “ano da peste” nas ilhas Flores e Corvo

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A gripe pneumónica, que ainda nas duas primeiras décadas do século XX assolou praticamente todas as ilhas dos Açores e de que o último e dramático episódio aconteceu na vila da Madalena do Pico em fins de 1919-começos de 1920, vitimando 11 pessoas entre eles o médico Dr. José de Freitas Pimentel, a benemérita Maria da Glória Duarte e o enfermeiro José Pereira de Macedo, também atacou mortalmente os povos de Flores e Corvo.
Já em Janeiro de 1919 – relata o historiador Francisco Gomes – a população das Flores, alarmada com as notícias sobre a gripe pneumónica que assolava outras ilhas, forçara a Câmara de Santa Cruz a telegrafar ao Governador Civil para que fosse suspensa a carreira marítima para a ilha enquanto durasse a epidemia, a fim de evitar possíveis contágios. Concordando inicialmente com a proposta, a Câmara cedeu aos protestos de um “comerciante e influente político da mesma cor partidária, anulando o pedido da suspensão das viagens”. O certo é que o navio “Funchal” que ligava Lisboa aos Açores – terminando a carreira nas Flores – não deixou de fazer as viagens e provavelmente, como acontecera na Madalena, terá trazido nos caixotes da mercadoria carregada em Lisboa alguns ratos e ratazanas habituais hospedeiros das pulgas que provocam a pneumónica. Os primeiros casos da gripe surgiram na Lomba e “rapidamente se estenderam a toda a ilha, levando ao encerramento do comércio e ao esgotamento de todos os medicamentos na ilha”1.
Em Abril de 1920 um surto de gripe, que também atingiu o único médico da ilha, Dr. José Jacinto Armas da Silveira, causou algumas mortes, tendo acontecido o mesmo na ilha do Corvo. O jornal faialense A Democracia de 10 de Maio noticiava que se agravava “o estado sanitário nas ilhas de Flores e Corvo”, adiantando que nas Lajes “deram-se até ontem 11 casos fatais, tendo também havido alguns óbitos em Santa Cruz e na ilha do Corvo” No dia imediato precisava que “a gripe continuava tendo-se dado quatro óbitos em Santa Cruz”, acrescentando que “apesar de há já alguns dias terem sido pedidos daquela ilha socorros médicos e farmacêuticos, até ontem a Junta de Saúde nada havia resolvido”. Igualmente O Telégrafo do mesmo dia 11 de Maio abordava o assunto e considerava “justo que se organizassem os socorros necessários para acudir aos nossos irmãos florentinos a contas com uma epidemia pneumónica”. Os dois periódicos coincidiam na urgência de se enviarem dois médicos, dois enfermeiros e medicamentos “para prestar socorro àquele povo, tanto das Flores como do Corvo”.
As autoridades locais, impotentes e sem meios para combaterem a doença, pediram providências ao governador civil, Dr. Luís Caldeira Mendes Saraiva, que muito se terá empenhado para que o pedido fosse imediatamente concretizado. Não houve, contudo, nenhum médico que se dispusesse a seguir para Flores e Corvo e, quando o Dr. Luís Saraiva se viu obrigado a “convidá-los”, todos se esquivaram. Enviou ofícios a três médicos: Dr. João Pereira de Lacerda Forjaz, Dr. José Estêvão da Silva Azevedo e Dr. Alberto Goulart de Medeiros, este já oficialmente aposentado, mas os dois primeiros exercendo cargos públicos. Daí haver interesse, até para que não se continuem a imputar responsabilidades ao governador civil, em transcrever a participação que fez ao Delegado do Procurador da República na Comarca da Horta em 20 de Maio de 1920:
“Tendo reunido em 10 do corrente neste Governo Civil a Junta Distrital de Higiene para indicar as medidas a adoptar perante a epidemia que com intensidade estava grassando nas ilhas das Flores e Corvo foi emitido o parecer de que era necessário enviar urgentes socorros médicos que estavam sendo instantemente reclamados.
Conformando-me com este parecer inteiramente justo e procurando executá-lo, mas não obtendo o assentimento voluntário de qualquer dos médicos que compareceram na referida Junta para a execução do parecer emitido, impôs-se-me a necessidade de convocar o Exmo. Delegado de Saúde Dr. Lacerda Forjaz e o médico mais novo Dr. José Estêvão da Silva Azevedo para irem prestar os valiosos serviços da sua profissão no tratamento das epidemias das Flores e Corvo, tendo justificado o Exmo. Delegado de Saúde por atestado que se acha arquivado neste Governo Civil […] que não podia ir na ocasião para Flores ou Corvo fazer clínica intensiva que o estado sanitário destas ilhas exigia, em virtude de sofrer de diabetes em grau já bastante avançado e ainda de uma adenite supurada que há poucos dias tinha sido aberta, e tendo respondido o Exmo. Dr. José Estêvão da Silva Azevedo que lhe era impossível seguir por o não permitir o seu estado de saúde. Como, porém, não tivesse apresentado o competente atestado de doença que o inibisse de seguir e nem como tal podendo ser considerado o seu ofício pois que a si próprio não podia passar atestados, convidei o Exmo. Delegado de Saúde a proceder ao exame, feito o qual, declarou o Exmo. Dr. José Estêvão da Silva Azevedo em condições de seguir viagem, sendo certo, porém, que o mesmo não seguiu nem se prontificou a seguir. E porque a apreciação da legitimidade ou ilegitimidade do não cumprimento da minha convocação compete aos Tribunais, venho rogar a V. Ex.ª se digne promover o que entender conveniente a bem da Justiça”2.
O Governador Luís Saraiva fez acompanhar esta participação dos ofícios nela referidos. Se houve ou não decisão judicial, é assunto que não conseguimos apurar. Mas, o que não deixa de ser uma trágica ironia – que pode ter condicionado os demissionários procedimentos daqueles clínicos – é que uns meses antes, tenha sido precisamente o médico florentino Dr. José de Freitas Pimentel a sucumbir no cumprimento do dever quando ajudava a população da Madalena do Pico a livrar-se da peste pneumónica! E que, na altura, O Telégrafo, através dos escritores Manuel Greaves e Emerson Ferreira tenha louvado a acção tardia e corajosa daqueles dois médicos “que sem recuar se colocaram na brecha quanto maior era o perigo”3. Decorridos quatro escassos meses, os mesmos clínicos – e por certo o inspector de saúde Dr. Neves – pura e simplesmente recusaram-se a cumprir o seu dever.
Enquanto O Telégrafo ignorou o facto, A Democracia noticiou que “apesar de todos os esforços empregados pelo exmo. chefe do distrito para que no ‘Funchal’ seguissem para as Flores alguns médicos, a fim de combaterem a epidemia de gripe, nenhum facultativo para ali foi, tendo até alguns apresentado atestados médicos! Que tristeza e que lástima”4. Apenas para ali viajaram, no ‘Funchal’ de 13 de Maio, o cirurgião dentista e ajudante de farmácia Melo Pereira e o praticante da farmácia ‘Garcia’ Guilherme Dart, acompanhados do chefe do distrito Dr. Luís Saraiva que, levando medicamentos e após se haver inteirado da situação, regressou à Horta no mesmo navio.
Telegramas remetidos das Flores informam que aqueles dois corajosos jovens foram recebidos com todo o carinho e admiração bem patenteadas no artigo de 5 de Junho publicado em O Atlântico de Santa Cruz das Flores sob o título “Homenagem sincera aos ilustres faialenses Melo Pereira e Guilherme Dart”, transcrito em A Democracia de 21 de Junho e que é um extenso e sincero “brado de gratidão, um clamor do respeito, um tributo de homenagem que o povo da ilha das Flores” presta àqueles “distintos faialenses” pela sua abnegação, o seu desprendimento pela vida para virem salvar vidas alheias” (…) “eles que na flor da vida, partiram cheios de intrepidez, não hesitando perante o perigo, antes, sim, rindo-se da fragilidade e cobardia dos que tendo deveres e obrigações se negaram terminantemente a cumpri-las, tremendo com medo da sua própria sombra (…)”.
Em fins de Maio a epidemia foi considerada extinta e terá causado 123 mortes, sendo 69 do concelho das Lajes e 54 do de Santa Cruz. Ainda conheci florentinos que tendo vivido aqueles tempos dramáticos consideravam 1920 como o “ano da peste”. 

 

(O autor escreve segundo a antiga ortografia)

1Francisco A. N. Pimentel Gomes, A Ilha das Flores – Da redescoberta à actualidade, 1997, p. 290
2AGCH, Livro n.º 380 (provisório) fls. 106-109
3O Telégrafo, 16 Janeiro 1920
4A Democracia, 14 Maio 1920

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