Sobre Sabores das Ilhas de António Cavaco

0
66

Deixou-me água na boca esta 2ª edição de Sabores das Ilhas, Gastronomia tradicional açoriana, um roteiro de afectos (edição de autor, Coingra Lda, 2014), da autoria de António Cavaco, chef refinadíssimo e gastrónomo de eleição, personalidade incontornável, espírito crítico, perspicaz e informado, licenciado em História pela Universidade dos Açores, açoriano por adopção, homem solidário e generoso que mantém uma relação fascinada com a(s) gastronomia(s) dos Açores.

Sabores das Ilhas foi, na sua génese, um programa televisivo que esteve no ar entre Outubro de 2011 e Maio de 2012 na RTP/AÇORES e, posteriormente, emitido na RTP/Internacional e RTP/África. Um programa com autoria e apresentação de António Cavaco, imagem e edição de Rui Machado, produção de Emanuel Carreiro e realização de José Serra e que, mantendo o mesmo formato, está neste momento a passar na RTP/AÇORES com o título de Sabores da Diáspora.

Agora em livro, Sabores das Ilhas é muito mais do que uma listagem de receitas, já que António Cavaco, relacionando diretamente os manjares com as vivências das ilhas e das suas gentes, faz também incursões no âmbito da historiografia, da etnografia, da geografia e de muitas formas de cultura. A obra é toda ela uma viagem pela gastronomia de cada uma das nove ilhas açorianas, com rotas que passam também pela doçaria, pelos queijos e pelos vinhos. Para cada receita são-nos dadas abundantes informações sobre “Ingredientes”, “Preparação”, “Confecção”, “Servir” e “Apontamentos histórico-etnográficos”. Aqui também se promove a restauração açoriana pois que, para cada ilha, o autor nos dá indicações de “onde comer”. Aliás, não conheço nenhum outro livro que nos dê uma visão tão abrangente e tão minuciosa da gastronomia açoriana.

Profusamente ilustrado e com excelente prefácio de Avelino de Freitas Meneses, Sabores das Ilhas vem, por conseguinte, recuperar, preservar, reinterpretar e divulgar a genuinidade da cozinha dos nossos antepassados.

Associamos a gastronomia a cheiros, temperos, paladares e sabores, esquecendo muitas vezes que a culinária é uma forma de cultura, faz parte da nossa tradição e do nosso património cultural. Pessoalmente acho que é relativamente fácil traduzir um bom poema de Ezra Pound, mas é extraordinariamente difícil fazer um bom cozido, uma boa caçoila, uma boa caldeirada ou uma boa alcatra.

A gastronomia, enquanto herança cultural, chegou até nós na segunda metade do século XV com o intenso tráfego marítimo que trouxe a estas ilhas as armadas vindas do Continente português e as naus regressadas das Índias em cujos porões vinham as orientais especiarias: a pimenta, a canela, os cominhos, o gengibre, a noz-moscada, o pau cravo, o açafrão, o colorau, etc. O que é curioso é que algumas dessas especiarias (o açafrão, por exemplo) chegam primeiro aos Açores antes de atingirem Lisboa, capital do reino. E, nesta matéria, há que realçar a centralidade de Angra nas rotas do Novo Mundo.

Segundo dá conta Gaspar Frutuoso, nas Saudades da Terra, a base da alimentação dos nossos povoadores partia do trigo (o milho só foi introduzido mais tarde nestas ilhas), da batata, do leite, da carne e do peixe.

É certo que a matriz da nossa cozinha é bem portuguesa, pois que herdámos a dieta mediterrânica e a gastronomia atlântica, mas a verdade é que uma forte influência local determinou algumas particularidades. Em tempo de “fast food” e num mundo globalizado, massificado e padronizado, é no peixe e é na carne que, nos Açores, marcamos uma diferença qualitativa.

Na carne soubemos ser, simultaneamente, reprodutivos, produtivos e criativos. Dois exemplos: o cozido das Furnas é uma variedade do cozido à portuguesa; a alcatra da ilha Terceira é um sucedâneo da chanfana beirã, só que no norte de Portugal é feita com carne de cabra e, nos Açores, com carne de vaca.

Por conseguinte, a nossa gastronomia prima pela variedade. E temos uma culinária típica e especificamente açoriana. Mas, mais do que isso, temos uma maneira de cozinhar, uma maneira de temperar. E temos esse segredo que não vem nos livros e que são os saberes da mão que tempera.

O fechamento destas ilhas nem sempre nos foi favorável. Mas há um factor que foi determinante no que às bebidas e doçaria dizem respeito. Refiro-me à clausura conventual. Foram os frades franciscanos, carmelitas e, mais tarde, os jesuítas que nos deixaram os segredos da produção dos bons vinhos e as boas aguardentes. E ficamos a dever às freiras a nossa melhor doçaria conventual. Essas religiosas, muitas delas oriundas da nobreza local, trocavam entre si as receitas trazidas das casas paternas e requintavam-nas. Para além da doçaria e confeitaria, rezam as crónicas que faziam também deliciosos licores. 

Vivendo em ilhas, soubemos também assimilar o contributo estrangeiro e disso tirar proveito. Os ingleses e os americanos que se instalaram nalgumas ilhas, durante o século XIX e primeiro quartel do século XX, introduziram entre nós produtos que não existiam por cá: as frutas cristalizadas, as passas, as nozes, etc. Daí nasceu, por exemplo, o conhecido bolo inglês.

Por conseguinte, os nossos hábitos gastronómicos resultam daquilo que herdámos e daquilo que fomos assimilando e criando ao longo dos tempos.

Sabores das Ilhas é a prova provada que nos Açores somos um destino de valor acrescentado. Já que não podemos ser maiores, temos que ser melhores. E para sermos melhores temos que continuar a ser diferentes. A gastronomia açoriana marca essa diferença cultural. Saibamos nós defender e valorizar este inestimável património gastronómico. Por isso, boa leitura e… bom apetite.

 

 

 

O MEU COMENTÁRIO SOBRE ESTE ARTIGO

Por favor escreva o seu comentário!
Por favor coloque o seu nome aqui
Captcha verification failed!
Falha na pontuação do usuário captcha. Por favor, entre em contato conosco!