Dia de Todos os Santos…

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O Pão por Deus ! Passaram anos. Muitos anos. Era então a minha sobrinha uma menininha e, como era, e é tradição, lá foi ela, saindo da casa da avó, em Santo Amaro, com uma colega carregando a felicidade, alegria, o brilho nos olhos, leveza de passarinho saltitante, pedir o tal Pão por Deus.

Poucos metros de casa uma mota atropela-a. Um acidente brutal. Alguém me chama, gritando.  Em minutos encontrei-me no sítio do acidente. A minha sobrinha, aquela criança que há minutos carregava alegria, jazia então caída na rua, ensanguentada, inanimada, feita um farrapo. Não sorriso lindo. Não movimentos. Não palavras. Não lágrimas.

O que fiz então, o que disse, sumiu para sempre. Recordo uma multidão cercando-me. A ambulância. E, lá dentro, lembro a cabeça daquela menina entre as minhas mãos e alguém na minha frente, penso que um polícia, segurando uma perna dela. Olhando-me, abanava a cabeça, sinal de não acreditar no milagre. Aquela perna, olhei e pensei já não fazer parte daquele corpo.

O hospital, em cujo ventre dentro de momentos entraríamos, surgia ao longe. Hospital, sinónimo de dores, sofrimento, gente dorida. E em breve aquela criança quase sem perna. 

Chegámos. Lá dentro grande confusão, confusão a que qualquer hospital certamente já se habituou a engolir. E, naquela tarde ensolarada, naquelas urgências, não houve Pão por Deus, não houve Dia de todos os Santos, pouco importa, houve uma família e uma médica unidos como se dum presépio se tratasse. Deram-se as mãos. Ainda hoje estão dadas. Foi a doutora Alda Magalhães. Fez o milagre. Atreveu-se. Forte, corajosa, muita garra. Operou. Conseguiu colocar aquela perna no lugar certo.

Foram horas de sofrimento. Esperando. Pensamentos desencontrados. Ideias malucas. A visão da perna sem vida. A incerteza. O som da palavra amputação berrando aos meus ouvidos. O acreditar e o não acreditar. Nem forças para rezar. 

A porta abriu-se. A doutora Alda Magalhães surgiu. O seu sorriso cúmplice. Os seus olhos falaram coisas que eu queria ouvir. E desapareceu rápido, porque ela não é mulher de exteriorizar o que sente. Muito menos esperar agradecimentos.

E outra cirurgia necessitou  ser feita, passadas semanas. Tudo bem. A cura acentuando-se. A doutora Alda, nas suas visitas ao quarto do hospital, carregava a menina, cama, sofá, sofá, cama, acarinhando-a, medicando-a. Conjuntamente com o pessoal do hospital conseguiram com carinho, dedicação e conselhos, afugentar fantasmas, espanar aranhas, teias, ideias tristes. Ajudaram a pensar grande.

A saída. As canadianas. A convalescença. Ficou tudo bem, graças a Deus. Mas ficou para sempre a triste lembrança. O acidente. As lágrimas. A confusão. O sofrimento. A mão do polícia na ambulância. A perna sem vida. As minhas ideias doidas. O pessimismo. O medo. O pedir a Deus. Com esperança. Sem esperança. O primeiro sorriso dela lá na caminha.

Hoje, Dia de todos os Santos, dou mais ênfase a tudo isto. Agradeço a todos que contribuíram para um final feliz. Um agradecimento especial para a doutora Alda. Ela foi a médica, a amiga, o anjo. Não tenho palavras. Não fosse ela, hoje não escreveria isto.

Mais tarde, a doutora Alda Magalhães foi a minha médica ortopedista, até que da Horta partiu. Confesso que me senti órfã, pois era nela que depositava toda a confiança. Ela atenuava-me as dores, dava-me conselhos, compreendia-me. De quando em vez eu refilava e vice-versa. Coisa de amigas! Não necessàriamente uma amizade grandiloquente, mas sim forte e leve simultaneamente. Ela, curioso, procurava esconder com humildade o quanto de bom oferecia aos doentes, estendendo frente a eles uma capa de arrogância, num, não me interessa, deixa p´ra lá!

Desviei-me um pouco da malfadada história do tal Pão por Deus. Penso bastas vezes como seria melhor poder limpar da memória essas recordações.

 

 

 

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