Retalhos da nossa história – 281 – Na busca da unidade açoriana: primeiro jogo de futebol inter-ilhas

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Numa época ainda profundamente marcada pelos velhos demónios dos individualismos ilhéus, nascidos e estimulados por muitos anos de abandono e de inveja, de isolamento e de pobreza, o desporto, sobretudo o futebol, foi um dos elementos que, nos começos do século XX, mais se destacou na aproximação entre as principais comunidades açorianas.
Tomamos hoje como exemplo o relevante papel desempenhado pelo Fayal Sport Club ao deslocar a sua equipa de futebol a Ponta Delgada em Abril de 1912. Era jovem o clube verde (fundado em 9.2.1909) e era ainda mais jovem o regime republicano português (5.10.1910).
Estas duas características devem ter pesado no entusiasmo que rodeou os dois primeiros encontros de futebol inter-ilhas que se realizaram entre as equipas do Fayal Sport Club e do Sport Club Académico, de São Miguel, no dia 6 e 7 de Abril de 1912.
Os faialenses, que haviam saído da Horta no dia anterior (uma sexta-feira) a bordo do rebocador inglês “Rescue”, da Fayal Coal and Supply C.ª Lda., chegaram na madrugada de sábado a Ponta Delgada e, à mistura com um intenso e selecto programa social, realizaram, nesse dia e no domingo, dois encontros de futebol contra os seus anfitriões da ilha do Arcanjo.
No primeiro, triunfaram por 4 – 1 e no segundo por 2-0. A caravana do Faial Sport era composta por 27 elementos, entre desportistas, dirigentes e adeptos.
No primeiro jogo, o F.S.C. alinhou com a seguinte equipa: Thiers de Lemos, A. Terra, M. Stattamiller, Luís Morisson, Sweet, Franklin, M. Medeiros, J. Bernardo, C. Webster, H. Peile e Augusto Lemos. Marcaram os golos: M. Medeiros, Luís Morisson, Webster e Peile. Para o segundo encontro, a equipa verde apresentou uma formação diferente da que jogara no dia anterior. Alinharam: Francisco Soares, A. Terra, M. Stattmiller, Thiers de Lemos, Franklin, Berquó, M. Medeiros, J. Bernardo, Luís Morisson, A. Lemos e Bantle. Os golos foram obtidos por Augusto Lemos e Luís Morisson.
Durante a sua permanência em Ponta Delgada os faialenses ficaram hospedados nos hotéis Açoreano e no da Rua do Gaspar. Para lá dos jogos, tiveram oportunidade de efectuar alguns passeios pela cidade, visitaram estufas de ananases, a fábrica da cerveja, os jardins António Borges, José do Canto e Jácome Correia e foram obsequiados, com recepções, no Ateneu Comercial e no Clube Micaelense, tendo ainda apresentado cumprimentos a várias entidades, em especial ao governador civil do distrito, Caetano Moniz de Vasconcelos.
Os dois jogos foram disputados com muito entusiasmo e grande desportivismo. O de sábado foi presenciado por cerca de duas mil pessoas, ao passo que ao de domingo assistiram mais de cinco mil espectadores. Nos intervalos dos encontros actuou a filarmónica ‘Progresso’.
Quando, pelas 20H00 de domingo, se dirigiram para o cais de embarque, tiveram a acompanhá-los “o sr. governador civil Caetano Moniz de Vasconcelos [republicano histórico que viveu no Faial dirigindo os trabalhos da construção da doca e que após a proclamação da República viria a ser presidente da Câmara Municipal da Horta (1910-1911) e também governador civil do distrito da Horta (1915)], desportistas micaelenses, damas e cavalheiros, sendo por essa ocasião muito ovacionados”.
Já a bordo, “da amurada do navio falou o sr. Machado Tristão” que a todos testemunhou o reconhecimento da embaixada faialense. Aliás, os “desportistas faialenses e todos os visitantes em geral eram incansáveis em tecer os maiores elogios aos micaelenses pela maneira bizarra como os receberam.” Chegaram à Horta na tarde de segunda-feira e foram alvo de entusiástica recepção. Relata a imprensa que “grande número de damas e cavalheiros” os aguardavam no cais e que “ao encontro do ‘Rescue’ saíram as lanchas ‘Varina’ e ‘República’, embandeiradas, bem como outras embarcações conduzindo a Filarmónica dos Artistas e grande número de pessoas que levantavam entusiásticos vivas aos desportistas, aos micaelenses e aos faialenses, sendo por essa ocasião queimados muitos foguetes”1.
Esta pioneira digressão futebolística, transformou-se numa verdadeira confraternização açoriana. Assim o entenderam diversas personalidades insulares, que, de imediato e de formas várias, procuraram potenciar esse florescente fenómeno desportivo. Não era passado um mês sobre aquela deslocação e já o periódico micaelense “O Repórter” lançava uma campanha nesse sentido e que mereceu dos seus congéneres hortenses excelente acolhimento. Escrevia ele que “há muito que uma confraternização efectiva de todos os irmãos do arquipélago açoriano se vem impondo a todos os espíritos para que melhor possamos todos defender os nossos interesses e, com confiança, encarar os nossos destinos”. A melhoria dessas relações entre as ilhas, “no respeito pela diversidade de interesses”, mas superando “as incompatibilidades ou rivalidades que nos desunam”, mostrou ser possível. E exemplificava: “ainda há poucos dias tivemos aí a visita dos nossos irmãos faialenses” a demonstrar que “uma simples diversão de desporto operou o milagre de nos arrancar, a todos, a venda que nos impedia de ver os laços de sincero afecto que nos unia”2. Essa difícil unidade – que hoje está bastante periclitante – só começaria a consubstanciar-se a partir de 1976, mas não há dúvidas que ela se foi esboçando e preparando através de intercâmbios vários e de estímulos assinaláveis, deles sobressaindo o desportivo como um dos mais importantes. E, afinal, tudo começou – há precisamente 106 anos – com um jogo de futebol realizado no dia 6 de Abril de 1912 entre equipas de São Miguel e do Faial. Já lá vão.

 

(O autor escreve segundo a antiga ortografia)

 

1“O Telégrafo”, 1912, Abril 9 (5.421), pp. 1 e 2
2“Confraternização Insular”, extenso artigo de opinião transcrito em “O Telégrafo”, 1912, Maio 2 (5.440), p.1

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